“Seminário dos Ratos” Lygia Fagundes Telles
A primeira dama da literatura brasileira, Lygia Fagundes Telles, escritora paulista que nos leva de maneira sublime pelos caminhos absurdos de suas histórias, consagrou-se ao lado de outros nomes da literatura nacional, sendo um deles o mineiro Murilo Rubião, como representante do gênero Fantástico. Os temas abordados pela autora são envolvidos por atmosferas surreais impactantes permeadas pela realidade cotidiana.
José Castello resume de forma brilhante o trabalho literário da autora no posfácio do livro que será analisado “Seminário dos Ratos” publicado pela editora Companhia das Letras:
José Castello resume de forma brilhante o trabalho literário da autora no posfácio do livro que será analisado “Seminário dos Ratos” publicado pela editora Companhia das Letras:
“A escrita de Lygia é refinada. É cortante. Ela escreve como um tapeceiro que – ciente de que qualquer ruptura brusca nos fios transversais de sua trama rasgará, ato contínuo, o conjunto de fios longitudinais da urdidura – prefere manipular suas agulhas na penumbra. Se a urdidura é o real, a trama é a literatura.” (p.175)
Para Lygia Fagundes Telles, vida e escrita são inseparáveis e é nas teias que tecem o cotidiano que ela atua com sua imaginação e habilidade narrativa fantásticas.
Na antologia de contos “Seminário dos Ratos” a autora alcança outro patamar da sua criação pautada no insólito banalizado. O livro traz 13 contos, Lygia assume em muitos deles vozes masculinas com suas personagens protagonistas na pele de homens. Selecionei três contos distintos entre si quanto às temáticas e construções narrativas para adentrarmos no universo insólito criado através na sutileza da escrita sombria típica de Lygia.
No conto que abre o livro, “As Formigas”, narrado por uma moça, estudante, que se hospeda numa pensão com sua prima é usado o recurso narrativo do relato em primeira pessoa que nos permite aproximar da experiência vivida pela protagonista gerando empatia.
O elemento insólito está concentrado em um caixote deixado para trás pelo inquilino anterior do quarto em que elas serão alojadas. Ele era um estudante de medicina e conservava no caixote ossos humanos. Essas informações são repassadas pela dona da pensão enquanto leva as garotas para o quarto no sótão.
As garotas mexem nos ossos e descobrem que eram de um anão. A protagonista passa a ter estranhos pesadelos desde que abriram o caixote e remexeram seu conteúdo além de sentir um forte cheiro desagradável de bolor. Aos poucos, Lygia com sua maestria revela que a problemática da história não está nos ossos de anão – que sempre aparecem fora do lugar que as estudantes deixaram – e sim, a presença das formigas que começam a invadir o quarto.
Elas descobrem que a ação das formigas está associada ao constante movimento dos ossos do anão e resolvem deixar a pensão. A forma como os insetos trabalham é humanizada como se agissem sob força sobrenatural no que se propuseram a realizar: reorganizar os ossos do esqueleto.
“Olhei de longe a trilha: nunca elas me pareceram tão rápidas. Calcei os sapatos, descolei a gravura da parede, enfiei o urso no bolso da japonesa e fomos arrastando as malas pelas escadas, mais intenso o cheiro que vinha do quarto, deixamos a porta aberta. Foi o gato que miou comprido ou foi um grito?” (p.16)
Em “A Presença” ficamos diante de um dos protagonistas masculino do livro. Nessa trama rápida, a autora explora a velhice de maneira sensível e poética. Narrado em terceira pessoa, acompanhamos os fatos como se fossem cores numa tela a formar imagens precisa, às vezes dúbias.
O jovem chega em um hotel que atende apenas idosos e aluga um quarto para espanto do recepcionista que se questiona como um jovem quer estar entre os velhos. O fato é que durante a história não fica claro o que fez o jovem rapaz querer se hospedar ali de qualquer forma. Ele se envolve na rotina dos idosos, passa a viver como eles e se diverte com os olhares curiosos sobre si. Todos parecem se perguntar “o que um jovem faz entre nós?”
À medida que o rapaz se deixa absorver pela rotina dos outros hóspedes ele começa a se sentir como eles, “ao se deitar, depois de ter tomado o chá servido às vinte e uma horas, ele já não se sentia bem” (p.121). Metaforicamente, a figura do recém-chegado pode representar a juventude que luta contra a presença da velhice na vida daquelas pessoas, mas esmorece diante as debilidades da ação do tempo. É um conto reflexivo e de uma sensibilidade profunda.
Em “Seminário dos Ratos”, conto que deu nome ao livro, vemos uma Lygia voltada para a sátira através da metáfora política. A história acontece apenas em um cenário e gira em torno de um fato: o seminário internacional contra a proliferação de ratos.
Envoltas em atmosfera de fina ironia as personagens representam as funções públicas e são construídas de forma quase cartunesca. O Secretário do Bem-Estar Público e Privado é “um homem descorado e flácido, de calva úmida e mãos acetinadas” manifestamente indolente e moroso enquanto que o Chefe das Relações Públicas é “um jovem de baixa estatura, atarracado, sorriso e olhos extremamente brilhantes” se mostra adulador e polido.
O elemento insólito se encontra no comportamento dos ratos que tomam o casarão onde acontece o Seminário de forma violenta e quase humanizada. Os ratos podem ser interpretados como a força popular que move o povo contra seus representantes inábeis em períodos de crise. Não se trata, necessariamente, do povo metaforizado nos ratos, mas a força da sua revolta.
Essa ideia fica clara na fala do Secretário do Bem-estar público:
“ – Só se fala em povo e no entanto o povo não passa de uma mera abstração.
- Abstração, Excelência?
- Que se transforma em realidade quando os ratos começam a expulsar os favelados de suas casas. Ou a roer os pés das crianças da periferia, então, sim, o povo passa a existir nas manchetes da imprensa de esquerda. Da imprensa marrom. Enfim, pura demagogia. Aliada às bombas dos subversivos, não esquecer esses bastardos que parecem ratos.” (p.158)
A proliferação dos ratos não pode ser contida, eles expulsam todos convidados do Seminário e o casarão volta a se iluminar na presença deles. O conto é permeado pela atmosfera insólita da humanização dos bichos, além de ser uma crítica sutil às relações entre governantes e governados.
Através dos três contos que trouxe na análise creio que foi possível aguçar o interesse pela obra de Lygia Fagundes Telles. Seu trabalho merece todo reconhecimento e deve ser disseminado entre os admiradores da literatura fantástica. Sua versatilidade é extremamente reveladora para os novos escritores da literatura nacional. Conhecer as obras de Lygia nos transporta para outros níveis de experiências literárias.
A autora não separou sua obra de sua vida, mergulhando na realidade para criar suas histórias:
“A criação literária? O escritor pode ser louco, mas não enlouquece o leitor, ao contrário, pode até desviá-lo da loucura. O escritor pode ser corrompido, mas não corrompe. Pode ser solitário e triste e ainda assim vai alimentar o sonho daquele que está na solidão.” (Lygia Fagundes Telles em entrevista)
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Contos de "Seminário dos Ratos":
As Formigas
Senhor Diretor
Tigrela
Herbarium
A Sauna
Pomba Enamorada ou Uma História de Amor
WM
Lua Crescente em Amsterdã
A mão no ombro
A Presença
Noturno Amarelo
A Consulta
Seminário dos Ratos
As Formigas
Senhor Diretor
Tigrela
Herbarium
A Sauna
Pomba Enamorada ou Uma História de Amor
WM
Lua Crescente em Amsterdã
A mão no ombro
A Presença
Noturno Amarelo
A Consulta
Seminário dos Ratos