“A Metamorfose” de Franz Kafka


 
Um dos clássicos da Literatura Moderna, “A Metamorfose”, publicado pela primeira vez em 1915 escrito pelo tcheco Franz Kafka (1823-1924) foi analisado e revisitado por diversos estudiosos e críticos nos últimos anos. Muito se escreveu sobre seus aspectos fantásticos e sobre suas personagens pelos vieses psicológico e literário. “A Metamorfose” é uma obra que retrata o indivíduo do século XX, assim como outros protagonistas kafkianos, Gregor Samsa é uma representação de uma existência alienada e coisificada típica do reflexo das transformações sociais e culturais dos séculos XX-XXI.

Nessa análise, procurarei me aprofundar nos aspectos filosóficos que Kafka evoca em suas estranhas narrativas. Para tanto, busquei me apoiar na filosofia do Absurdo do escritor Albert Camus que foi bastante influenciado pelas ideias que compõe a construção das personagens kafkianas. As narrativas de Kafka são permeadas por metáforas e simbologias que requerem mais de uma leitura e não esgotam as possibilidades de reflexão e interpretação.

“A Metamorfose” é uma narrativa curta (em torno de 95 páginas) na qual acompanhamos o processo de transmutação do caixeiro-viajante Gregor Samsa. O livro inicia com uma das frases mais disseminada e conhecida da literatura entre as obras de Kafka: "Certa manhã, ao acordar de sonhos agitados, ainda na cama, Gregor Samsa descobriu que tinha se transformado num inseto monstruoso.” (p.05). Estamos diante do cerne da história logo no primeiro parágrafo. Diferente da maioria das narrativas fantásticas, Kafka não leva o leitor pelo caminho no qual surpreenderá com o protagonista transformado em inseto num clímax, ele nos fornece o elemento insólito no início.

O que nos leva a questionar o motivo de Gregor ter acordado na forma de um inseto ou se isso não será apenas sonho ou delírio. Percorremos toda história na expectativa de compreendermos de forma racional os porquês de tal condição recair sobre a personagem; como acontece nos enredos kafkianos nossas respostas não serão satisfeitas nem mesmo com a aproximação dos desfechos. O que tornou Kafka um dos escritores mais interessantes da Literatura Fantástica, entre outras características, é a sua capacidade de gerar mais dúvidas no decorrer dos fatos do que solucionar as situações insólitas. O estranho, em Kafka, é banalizado, tratado de forma indiferente pelas personagens. Traço literário que influenciou bastante os escritores do Realismo Fantástico, principalmente na América Latina.

Seguindo adiante, Gregor Samsa não está preocupado a princípio com sua aparência de corpo largo e perninhas finas dificultando a locomoção. Apesar da estranheza do seu corpo, ele está mais preocupado em não perder o trem para o trabalho, em faltar um dia e ter que lidar com as cobranças do chefe:

 
“Ele olhou para o relógio tiquetaqueando sobre a cômoda “Meu Deus”, pensou ele. Eram seis e meia e os ponteiros não paravam de girar. Já passava da meia hora, eram quase quinze para as sete. Seria problema no alarme do relógio? Dava para ver, ali da cama, que ele estava ajustado corretamente para as quatro. Certeza que tocara. Sim, mas era possível dormir mesmo com aquele barulho que fazia os móveis tremerem? (...) O trem seguinte partiria às sete. Para pegar esse, teria que correr feito louco.” (p.08)

Samsa, na sua incapacidade de se mover como antes, passa longas horas inerte refletindo sobre seu emprego e a condição na qual vive sua vida a servir toda família. Ele mora com os pais e a irmã mais nova, é o único que trabalha para manter a casa. Essa ideia começa a perturbá-lo, o que sua família vai fazer sem o seu salário? Gregor passa a se incomodar com questões que até então não o chateavam enquanto era um ser humano ativo e repleto de obrigações a cumprir.

Nesse sentido, podemos identificar um dos aspectos do existencialismo presente nas histórias kafkianas, o despertar do individuo de sua vida inautêntica na qual passou a maior parte do tempo de forma alienada. Essa constatação faz com que o individuo se torne um estranho para si mesmo e para todos que o cercam e que também vivem de forma alienante.

Nos escritos de Albert Camus conseguimos perceber esse processo de retomada de consciência na “Contradição existencial”. O indivíduo passa toda existência envolvido por uma realidade inautêntica, ou seja, que foge da sua verdadeira essência, sem viver em acordo com o que é. Nesse caso, Gregor Samsa passou sua vida trabalhando como caixeiro-viajante contra sua vontade apenas para quitar uma dívida do pai e sustentar a família. Sempre pensando no bem deles, nunca em si mesmo. Quando se vê na condição de inseto tem o tempo e o isolamento necessários para enxergar que aquela era uma existência falsa, que ele não era ele mesmo. Como uma enorme barata, talvez Gregor se sinta ele mesmo pela primeira vez. O inseto grotesco representa, então, o seu verdadeiro Eu estranho à vida que o cerca. Nesse ponto, a retomada de consciência para Camus é um processo doloroso de abandono e encontro com o Absurdo da existência autêntica – a existência de inseto.

O tédio, a angústia, a incompreensão, o isolamento pelos quais Gregor passa quando a família descobre sua nova condição é o momento doloroso no qual os indivíduos percebem a falta de sentido e sua limitação em agir sobre esse vazio. Ora o indivíduo percebe a importância das suas escolhas para direcionar sua existência, ora percebe sua limitação em agir sobre os próprios impulsos, causando assim a “contradição existencial”. Nesse ponto, o desamparo e desorientação são reflexos da consciência de que toda a busca se limitava aos valores desprovidos de qualquer sentido autêntico. O indivíduo acaba se entregando à imobilidade de um niilismo passivo ou consegue reconhecer na própria existência absurda o resgate que lhe confere sentidos novos numa conduta consciente e libertadora de um niilismo ativo.

Em “A Metamorfose”, aos poucos Gregor se rende a sua condição de inseto enquanto sua família o condena à exclusão. Ele se deixa sucumbir ao meio no qual viveu nos tempos de trabalhador ativo e funcional. Na sua retomada de consciência se torna uma barata insignificante e deplorável não só para si mesmo como para todos em sua volta.

Kafka constrói as personagens secundárias de forma tal que podemos ver em cada uma as pressões exteriores às quais Gregor Samsa formou sua personalidade paranoica, alienada e despersonalizada. Cada membro da família é importante para compreendermos a trajetória do declínio existencial do protagonista.

A relação mais significativa, talvez, seja entre Gregor e a irmã mais nova, Grete. Ela procura cuidar do irmão ao levar comida e organizar seu quarto para que possa rastejar com mais facilidade. Suporta a aparência do irmão com dificuldade e toma para si a obrigação de mantê-lo confortável e longe dos olhos dos outros. Os pais de Gregor não fazem questão de vê-lo. A mãe se nega a encarar Gregor por conta dos nervos frágeis próprios de uma figura materna atordoada pela perda do filho real. O pai por sua decepção, vergonha e ressentimento em perder o primogênito provedor da casa.

A família cai na miséria sem Gregor para sustenta-los, por isso, passam a se desdobrar trabalhando, o pai num banco e a mãe costurando para fora de casa. Gregor observa tudo do canto de seu quarto mortificado pelo peso da sua inutilidade e pelo sofrimento da família.

Outro aspecto interessante de ressaltar é o fato de que à medida que Gregor passa a se adaptar à sua condição de barata, ávido por contato exterior, as pessoas se tornam mais avessas a ele:

 
“Mais cedo, quando a porta estava trancada, todos queriam entrar para vê-lo; agora, tendo ele aberto uma porta e as outras ficando obviamente destrancadas durante o dia todo, ninguém mais vinha e as chaves permaneciam presas nas fechaduras pelo lado de fora.” (p.35)

Instala-se, assim, a completa solidão e seu desligamento do mundo externo. Ninguém terá interesse real em conhece-lo em toda sua miserabilidade de inseto. Não há interesse nem mesmo curioso. A existência autêntica é absurda, solitária e feia.

Para chegarmos ao desfecho da análise, a figura principal é o pai que sem suportar a situação do filho e o que ela acarretou à família tenta exterminá-lo ao atirar coisas contra sua carapaça e a persegui-lo como o que de fato é: uma horrível e nojenta barata.

A essa altura, Gregor se desumanizou por completo aos olhos da família que não reconhecem nele qualquer traço do homem trabalhador que fora:

 
“Enquanto cambaleava pela sala no intuito de juntar toadas as suas energias para correr, mal mantendo os olhos abertos, em sua desatenção, não lhe ocorria ideia alguma de como fugir a não ser ficar correndo e ele quase se esquecera de que as paredes estavam disponíveis, embora obstruídas por móveis adornados com esmero, cheios de pontas afiadas e picos – nesse momento, alguma coisa lançada casualmente voou perto dele e caiu rolando à sua frente. Era uma maçã; imediatamente, uma segunda veio voando. Gregor ficou parado, com medo. Não adiantaria mais, pois o pai resolvera bombardeá-lo.” (p.62)

Nesse trecho, podemos perceber como o ambiente no qual Gregor passou boa parte da vida se tornou perigoso e estranho a ele ao sentir dificuldade de fugir pela própria sala cheia de objetos que possam feri-lo. Uma das maçãs se acopla em suas costas causando um ferimento que o levará, lentamente, à morte. Gregor resiste ao ataque, como é próprio das baratas, fica quieto até recuperar um pouco da energia.

Por fim, quem toma a frente na decisão de eliminá-lo de uma vez é Grete, a irmã cuidadosa e dedicada que aos poucos passa a trata-lo com descaso e enfado:

 
“- Temos que nos livrar dele – exclamou a irmã – É o único jeito, pai. Você tem que tentar se livrar da ideia de que isso é Gregor. O fato de que acreditamos nisso por tanto tempo, esse é o nosso verdadeiro infortúnio. Mas como pode ser o Gregor? Se fosse o Gregor, ele teria muito antes percebido que uma vida normal entre seres humanos não é possível com um bicho desses e teria ido embora voluntariamente. Então, não teríamos mais um irmão, mas poderíamos continuar vivendo e honrar a memória dele. Mas esse animal nos prejudica.” (p.84)

A fala da irmã nos mostra a incompatibilidade entre a existência atual de Gregor e sua família. Por um lado, seu discurso pode soar cruel e egoísta ao desistir do irmão. Por outro, ao acompanharmos seu desgastante esforço em trata-lo como se fosse um ser humano torna seu grito de revolta compreensível. Gregor, por sua vez, não pode ser culpado em não ir embora, em se manter apegado à sua vida familiar, ao seu quarto e cotidiano que lhe traziam segurança. Ainda que vivesse essa nova existência absurda permanece preso à vida de antes, seu comodismo pode ter sido seu fim ao tentar viver uma nova existência em moldes antigos de ser humano.

Assim, após situações degradantes e do completo abandono por parte do mundo externo, Gregor se entrega à morte no escuro do antigo quarto, impossibilitado de se reencontrar em sua nova condição:

 
“E agora?, Gregor perguntou-se, olhando ao redor, no escuro. Logo descobriu que não podia mais se mover. Não ficou surpreso com isso. Pelo contrário, considerava anormal ter sido capaz até esse ponto, de andar com aquelas perninhas finas. Além disso, sentia relativa alegria. Verdade que sentia dores pelo corpo todo, mas parecia-lhe que estavam gradualmente ficando mais e mais fracas e por fim iriam embora de vez. A maçã apodrecida nas costas e a área inflamada circundante, inteiramente, cobertas de poeira branca, ele mal as notava. Lembrava-se da família com afeto e amor profundos. Nesse sentido, sua própria convicção de que tinha de desaparecer tornara-se, se é que era possível, ainda mais decisiva que a da irmã. Ele permaneceu nesse estado de reflexão vazia e pacífica até que o relógio da torre soou as três da madrugada. Da janela, testemunhou o começo do amanhecer lá fora. Então, sem que ele quisesse, sua cabeça afundou até o chão e de suas narinas fluiu fraquinho o seu último sopro.” (p.86-87)
 
O fim de Gregor Samsa representa o recomeço para sua família. No fim da história, os membros restantes vendem a casa comprada por Gregor e decidem se mudar para um lugar mais modesto e agradável. Durante a viagem de trem, os pais e a irmã “conversavam, recostados confortavelmente nos assentos, sobre as perspectivas futuras e descobriram, observando com mais atenção, que estas não eram nada más...”(p.93)

Os três redescobrem novas formas de viver após a morte de Gregor que os mantinha na acomodada existência supérflua. Para nosso protagonista o fim não foi tão agradável, porém, em suas últimas reflexões preso no corpo de inseto, Gregor alcançou um novo nível de consciência que o impedia de continuar vivendo no tipo de vida que conhecia até então.

“A Metamorfose” é um livro que nos possibilita inúmeras reflexões sobre vários aspectos da existência humana. Tentei trazer um pouco da análise filosófica do absurdo que acabou moldando o efeito kafkiano de se construir enredos fantásticos. Pretendo ainda, analisar outras de suas obras por esse viés filosófico como “O Processo”, “O Castelo” e o memorável conto “O Artista da fome”.

Franz Kafka é um dos meus maiores influenciadores na escrita e mudou minha vida de leitora. Revisitar suas obras sempre nos possibilita novos olhares e reflexões. Para aqueles que ainda não conhecem seus escritos é uma experiência maravilhosa e para os que, assim como eu, admiram-no vale a pena estarmos sempre em contato com o que deixou escrito, bem como, com aqueles que se permitiram ser influenciados por sua estética literária do absurdo.

 
Referências:
KAFKA, Franz. “A Metamorfose”. Tradução: Caio Pereira. Barueri, SP: Novo Século Editora, 2017.
CAMUS, Albert. "O Mito de Sísifo". Tradução: Ari Roitman e Paulina Watch, RJ: Record, 2010.
Larissa Prado
Enviado por Larissa Prado em 24/05/2018
Reeditado em 13/08/2019
Código do texto: T6345477
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