“Bile Negra” de Oscar Nestarez

 
 
“Também conhecida por teoria humoral hipocrática ou galénica, segue as teorias dominantes na escola de Kos, segundo as quais a vida seria mantida pelo equilíbrio entre quatro humores: sangue, fleuma, bílies amarela e bílies negra, procedentes, respectivamente, do coração, sistema respiratório, fígado e baço. Cada um destes humores teria diferentes qualidades: o sangue seria quente e úmido a fleuma, fria e úmida; a bílis amarela, quente e seca; e a bílis negra, fria e seca. Segundo o predomínio natural de um destes humores na constituição dos indivíduos, teríamos os diferentes tipos fisiológicos: o popular sanguíneo, o sereno fleumático, o forte colérico e o perfeito melancólico”.
(Teoria humoral  ou dos quatro humores)


Poucos autores nacionais de horror me impressionam tanto quanto Oscar Nestarez. Sua escrita resgata o que há de mais intenso no gênero, a apreensão, repulsa e, claro, o fator essencial numa obra de horror, o medo inquietante. Sua forma de intercalar os fatos das histórias é caótica, mas não no sentido da incoerência, e sim, da fluidez que não nos permite tomar fôlego entre uma cena assombrosa e outra. Tudo acontece num movimento atordoante como funciona nossos próprios pensamentos e sensações.

Em “Bile Negra”, último livro do autor paulistano publicado em 2017, acompanhamos a mente perturbada do narrador Vex. Nestarez escreve ambientando a trama em sua cidade natal São Paulo, na primeira parte da história, e sabe explorar as diversas sensações de isolamento, vazio e alheamento próprias da vida em megalópoles. Mais do que isso, as relações cotidianas forjadas no cerne da nossa sociedade pós-moderna com toda sua liquidez das relações interpessoais e inconstâncias existenciais. Vex é apresentado como um homem que passou por uma grande perda e, por isso, se trata com uma psiquiatra que o ajudou a sair do fundo de uma depressão intensa. Temos assim uma informação importante sobre nosso único elo com os fatos narrados: ele é um homem suscetível que já esteve afundado nos labirintos obscuros de uma mente traumatizada. Na segunda parte da história, Nestarez nos leva ao interior do sul do país, para uma casa localizada numa fazenda que pertenceu à família do narrador. Temos aí, uma espécie de fuga da agitação caótica da megalópole para a quietude do interior na tentativa de se esconder do que acontece no mundo. E o que acontece no mundo que força Vex a correr para suas memórias de infância no interior?

“Bile Negra” gira em torno de uma bizarra epidemia que ao atingir as pessoas desperta seus impulsos mais sombrios (relacionados à raiva, tristeza, agressividade, enfim, “o lado negro da força” humano). Nestarez sabe como criar cenas que despertam a repulsa e o pavor tal como Clive Barker, me sinto sempre arrebatada por sua habilidade descritiva: “Ela estava sentada sobre uma pilha de cabeças humanas apodrecidas e sorriu, dando as boas-vindas(...)- Oh, então você parou de sonhar? Bom. Agora podemos começar”, o trecho corresponde ao clássico “Hellraiser” de Clive Barker, sua precisão descritiva sobre detalhes sórdidos como “estava sentada sobre uma pilha de cabeças apodrecidas” me fez associar a habilidade poética de Nestarez ao criar ambientes grotescos que não se resumem apenas ao gore, como Barker seu grotesco beira a poesias capazes de nos despertar completa repulsa.

 
“Começo a andar, sem rumo, quando algo pequeno, mole e quente se choca violentamente contra minha cabeça. Aos meus pés, os relampejos me mostram um recém-nascido ainda vivo a despeito da queda, chorando a pleno pulmões.” (p.45)

Esse trecho faz parte do declínio mental ao qual Vex é lançado. O desfecho do livro, que por sinal é tão incrível quanto todo seu desenrolar, nos revela que o narrador foi contaminado e que essas passagens surreais, essas viagens mentais representam sua transformação, sua perda total de si mesmo.

“Bile Negra” é uma obra que contempla aspectos diversos do gênero horror: situação apocalíptica ocasionada por uma epidemia (e não se trata de zumbis), terror psicológico ao acompanharmos o declínio mental dos personagens e os traços de ocultismo relacionados à teoria da bile negra que o narrador traduz por “as minúsculas particulas se espalhavam pelos outros humores e como, por força desconhecida, eram atraídas umas às outras.” (p.127)

A contaminação acontece pela presença de um véu negro que cobre os céus do país – quiçá do mundo todo – e que tem total domínio das emoções negras das pessoas fazendo-as alimentar o que há de pior em suas mentes. O enredo nos leva a refletir sobre muitas questões existenciais e filosóficas acerca do funcionamento da mente e o poder dos seus recônditos sombrios.

Ao terminar “Bile Negra” ficamos com uma ânsia de continuidade, e isso para mim é um dos sinais que apontam quando uma história é boa. Além de “Bile Negra”, Nestarez escreveu outros livros de horror tão fascinantes quanto o aqui analisado: “Sexorcista” (2104) e “Horror Adentro” (2016) um livro de contos. Recomendo a leitura do seu trabalho aos aficionados pelo bom e velho horror. Incentivar o gênero em nosso país é muito importante, por isso, pretendo trazer análises como forma de recomendar outros autores nacionais de horror que produzem algo diferenciado e realmente assombroso como é o caso de Oscar Nestarez.
Larissa Prado
Enviado por Larissa Prado em 03/01/2018
Reeditado em 13/08/2019
Código do texto: T6215896
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