O horror oriental de Ryunosuke Akutagawa
A narrativa de Ryunosuke Akutagawa é própria do seu lugar de origem, o Japão. O horror feito no oriente é dotado de uma lógica peculiar envolta pelo misticismo medieval e pelo terror forjado na psiquê humana frente à morte, seres sobrenaturais e loucura. Ryunosuke nasceu em Tóquio no ano de 1892, foi criado pela família de um tio, longe dos pais e cresceu assombrado pela doença mental que acometeu a mãe e a impediu de cuidar do próprio filho. Vivendo em constante colapso nervoso e com a saúde frágil, Ryunosuke cometeu suicídio aos 35 anos temendo estar enlouquecendo como a mãe.
Sua obra reflete seu estado delirante e lida com a loucura em diversas formas. Ao lermos seus contos identificamos seus terrores mentais expressos nas vivências dos personagens. Podemos dividir seus escritos em dois momentos distintos: as obras ambientadas no Japão antigo (fase da produção de contos históricos) e as obras autobiográficas (introspectivas) em que consegue exteriorizar seus demônios naquilo que nos conta.
O livro que irei analisar se chama “Kappa e o levante imaginário” reúne no total 11 contos dos quais selecionei 4 para analisar de forma mais aprofundada.
O conto que dá título ao livro “Kappa’ (1927) narra as experiências vividas por um doente mental que vive num asilo. Ele conta sobre sua famosa história sobre os anos que passou em meio aos kappas. Criaturas sobrenaturais do folclore japonês, são humanoides de baixa estatura, cara angulosa, boca pontuda em forma de bico e uma cartilagem característica em forma de prato. Viveriam em rios e lagos.
Os fatos narrados pelo doente são tão ricos em detalhes que nos leva a questionar se são reais. Há uma aproximação à forma descritiva utilizada por Lovecraft em seus contos cósmicos, além disso, Ryunosoke assim como Lovecraft, tece críticas à raça humana usando outra espécie em comparação.
“Os Kappas têm melhor conhecimento dos seres humanos que nós deles. Talvez porque a quantidade de homens aprisionados por eles é bem maior que a de Kappas que nós aprisionamos. Não necessariamente prisioneiros: muitos homens já haviam passado pela terra dos Kappas antes de minha chegada. Mais que isso vários viveriam ali até o fim de suas vidas. É fácil entender o porquê. Onde eles vivem, nós podemos desfrutar a vida inteira sem trabalhar, apenas pelo privilégio de sermos seres humanos.” (p.28)
Durante todo conto encontramos críticas sobre o comportamento humano de forma sarcástica. Ryunosuke tece críticas acerca das classes de trabalhadores, intelectuais, artistas, e mesmo, sobre o matrimônio na sociedade humana.
“Fato curioso: achavam graça naquilo que nós, humanos, levamos a sério, enquanto encaravam com seriedade coisas que a nós pareciam engraçadas, e isso me deixava bastante confuso. Por exemplo, justiça e humanidade são para nós assunto sério, mas os faziam dobrar-se de tanto rir. Parecia, portanto, que havia uma discrepância entre o nosso conceito daquilo que é cômico e o deles.” (p.31)
A questão da alteridade perpassa toda história nos fazendo sentir como o narrador que presencia costumes de criaturas estranhas a ele. O outro, nesse sentido, se torna o elemento desencadeador do estranho. Estar inserido numa sociedade que não é a sua e cercado por valores e ideais contrários aos seus é uma situação, a princípio, angustiante, pois põe em xeque nossas convicções.
O conto segue jogando com as diferenças entre a organização social dos Kappas e dos homens, utilizando de uma sublime ironia o autor critica também a concepção de arte para os humanos. É, sem dúvida, uma das histórias mais críticas escritas pelo autor. Cada detalhe é uma possibilidade de reflexão.
Para seguirmos adiante na análise dos constos ressalto o recurso utilizado como desfecho em “Kappa”, o velho uso da loucura do personagem ser de fato a realidade que ninguém ou poucos suportam ver.
“De acordo com o doutor S. deste manicômio, sofro de demência (o que vou dizer certamente irá ofendê-los), eu não sofro de nenhuma demência precoce, quem sofre são os senhores todos, inclusive o doutor S. E se até o médico Tchak me visitou, é claro que o estudante Kap e o filósofo Mag também vieram.” (p.81)
O conto “O Nariz” (1916) pertence à leva de histórias de caráter histórico e narra a tragicomédia de um monge budista que possui um nariz muito grande.
Uma das considerações importantes a ser feita sobre o conto é que assim como as outras histórias de Ryunosuke, o existencialismo presente lida com conflitos identitários próprios do autor e sua obsessão em não enlouquecer.
Em “O Nariz” o monge Zenchi é conhecido por seu nariz muito grande e de formato peculiar: “ seu nariz tem seis ou sete polegadas de comprimento e cai por cima do lábio superior até abaixo do queixo” (p.97)
Ele precisa de ajudantes para manusear o nariz e vive obcecado, também, pelo nariz dos outros à procura de algum que seja igual ao seu. Mas não existe um nariz como o de Zenchi, ele sofre por conta da sua unicidade, por não-pertencer a nenhum grupo de pessoas com nariz como aquele.
O monge procura todas formas de se livrar do nariz até encontrar uma receita ideal, que começa a funcionar: “ consistia apenas em ferver o nariz e deixar que alguém pisasse nele” (p.101) Por um tempo Zenchi se viu satisfeito em se livrar do nariz estranho, mas logo todos passam a encará-lo com desdém e fazem piadas sobre seu nariz pequeno e normal. Ele passa a sofrer com o enxovalho das pessoas de tal forma que nunca sofreu quando possuía um nariz grande e estranho. Zenchi então retorna à sua forma natural, o nariz volta a crescer, para fugir das caçoadas.
“ – Agora, ninguém mais caçoará de mim – murmurou para si mesmo, balançando o longo nariz à brisa outonal”.
Para finalizar a breve análise da obra de Ryunosuke selecionei seus dois contos que são os meus favoritos: “Inferno” (1918) e “Rodas dentadas” (1927). São contos de fases distintas na produção do autor, mas que compartilham a questão da loucura presente nas narrativas.
Em “Inferno”, Ryunosuke inspirou-se num certo pintor e escultor budista, Yoshihide, que viu a casa ser queimada e gargalhou por ter visto e captado a imagem do fogo para sua arte. Utilizou também outro pintor, Hirotaka, que produziu uma peça retratando o inferno em chamas.
O conto narra a loucura pela qual padeceu o pintor Yoshihide depois que um grão-senhor, Horikawa, encomendou a pintura de seu biombo. Descemos pelo declínio do pintor ao tentar retratar da maneira mais realista possível o inferno em chamas.
A atmosfera da história conserva uma tensão sombria a cada vez que o pintor trabalha na tela buscando alcançar a perfeição e não mede esforços para isso. Ryunosuke nos apresenta a filha do artista e constrói em torno dela uma imagem de jovem virtuosa e dedicada ao pai. Essa relação entre pai e filha vai servir muito bem no ápice do horror que é o desfecho do conto:
“Até hoje não consigo me esquecer da expressão de seu rosto naquele momento. Instintivamente, ele tenta correr em direção à carruagem, mas estacara, com as mãos ainda estendidas, quando as labaredas a envolveram, os olhos fixos sobre ela como se lhe fossem saltar da órbita”. (p.241)
O pintor vê a filha ser queimada viva dentro de uma carruagem para poder captar a imagem que faltava e completar sua obra do inferno em chamas. Ele alcança, assim, a perfeição da sua obra após ter conhecido o inferno. Logo após terminar o biombo, Yoshihide se enforca, mais uma vez Ryunosuke evoca o suicídio como redenção de personagens sinal da projeção das suas próprias inquietações em seus personagens.
“Rodas dentadas” (1927) é a prova do que afirmo acima, como escreveu Shintaro Hayashi “Mais que um conto, um depoimento confidencial”. O conto foi escrito pouco antes do seu suicídio e nos mostra o nível de tormenta mental que Ryunosuke estava vivendo. Nesse estranho relato o narrador diz ver rodas dentadas nas paisagens que o cerca e elas sempre antecedem cefaleias. O teor delirante do conto nos brinda com frases que se tornaram máximas da obra de Ryunosuke como “Não tenho consciência de qualquer espécie, nem mesmo artística. Sensibilidade é tudo que tenho”. (p.316)
Acompanhamos o declínio de Ryunosuke na sua contínua luta contra a loucura, que de fato, o levou a se desgastar mentalmente:
“O mar além das dunas de areia estava cinzento e sombrio. Havia numa das dunas um balanço sem tábua. Essa visão me lembrou imediatamente uma forca. E até dois ou três corvos estavam lá pousados, me viram, mas nem fizeram menção de voar. O do meio levantou o bico enorme ao céu e grasnou, quatro vezes, tenho certeza”. (p.344)
Ryunosuke, então, termina “Rodas dentadas” revelando o que de fato pretendia nos próximos meses: tirar a própria vida.
“Já não me restam forças para continuar escrevendo. Viver assim é uma tortura indescritível. Alguém poderia me estrangular em silêncio, enquanto durmo?” (p.346)
“Kappa e o levante imaginário” possui outros contos memoráveis que infelizmente não me aprofundei nessa breve análise, entre eles destaco “No Matagal”, um conto diferente de tudo que foi feito dentro da literatura de suspense. “A Mágica” e “As Laranjas” trazem reflexões sobre a existência humana através do cotidiano. Ryunosuke Atagawa utiliza muito bem seu país na construção espacial das histórias, bem como, no uso da mitologia e folclore nipônico. É um escritor inventivo que ao meu ver foi vítima da própria criatividade abundante e merece ser difundido entre os admiradores de horror e aficionados por contos.