Análise Literária do soneto "largada a poesia no chão da fábrica"

largada a poesia no chão da fábrica - Renato Passos de Barros

é minha inspiração o prazo de entrega!...

pois o ócio criativo nada cria...

e inicia a arte final noutras vias,

confirma a criação, mas antes nega

se falta inspiração pra poesia,

só sobra transpiração quando alega

tanta dor no esforço do dia a dia...

escravidão!... por que então não renega?

nada pensa enquanto o braço trabalha,,,

crava raiz quadrada em solo pobre,

calcula o fim do tempo e enfim descobre:

há sobrevida e nisso a vida falha!

tão inútil quanto fútil o registro

poético desse instante é... sinistro

23/10/2017

Análise do Soneto “largada a poesia no chão da fábrica”

Para quem acompanha a vasta produção literária do poeta brasiliense Renato Passos de Barros, não é difícil perceber a recorrência dos temas sociais em críticas ao sistema capitalista e suas artimanhas de exploração legitimadas por seus crimes invisíveis. A poesia social do autor não é uma busca por aceitação e identificação do sujeito poético para se auto promover nos bastidores da Literatura. Tampouco disseminar suas convicções políticas e partidárias. É mais que isso: ao falar de suas inquietações e frustrações frente às injustiças do sistema, o poeta sai de sua zona de conforto, abdica do egoísmo eurocentrista do “eu” para vestir a indignação de todos nós, ultrapassando a mesquinhez carregada de falsas ideologias para se tornar personagem de um todo, de uma coletividade que abarca muito mais que doutrinas filosóficas desprovidas de empatia.

Muitas de suas poesias se bifurcam permitindo mais de uma interpretação, tanto do ponto de vista estético quanto filosófico, fazendo-se intensa e ao mesmo tempo sutil em qualquer uma delas. E o mais interessante é que ele consegue dialogar com o leitor num tom coloquial e ligeiramente prosaico, fazendo-o transitar por seus versos com muita intimidade.

Sempre consciente do seu papel enquanto cidadão, a retórica poética de Renato traz mais que beleza em seu cerne, traz um convite à reflexão. Tendo como instrumento apenas a poesia, ele adverte sobre a importância de se pensar sem as vendas invisíveis que a sociedade capitalista coloca em nosso olhar desprovido de estranheza.

Com o soneto “largada a poesia no chão da fábrica”, mais uma vez o poeta marxista brasiliense mostra que sua sensibilidade não tem limites, que seu olhar está para muito além dos muros frios das fábricas que se proliferaram como vermes desde a Revolução Industrial, levando o proletariado a condições desumanas de trabalho. Claro que o soneto pode estar falando do trabalho mecanizado dentro das inúmeras fábricas espalhadas por todo o país em qualquer época da História. No entanto, meu olhar se voltou para um período específico: final da Idade Média (início do Capitalismo Comercial – prenúncio da Revolução Industrial). Por que exatamente essa época? Porque foi, nesse período, que se deu a passagem do trabalho manual para o mecanizado. O título do soneto sinaliza para esse tempo: “largada a poesia no chão da fábrica”. A palavra poesia vem do grego. É dela que se originou o verbo “poer” que significa “criação”; “fazer com esmero”. Os artesãos da Idade Média faziam seu trabalho manual alicerçado sobre o tripé: dignidade, mérito e honra. Tralhavam por prazer, com a perfeição da arte. Mais que trabalhadores, eram artista governados por sua própria lógica. Há muita poesia no trabalho manual, na riqueza dos detalhes, no processo criativo. Com o advento da Revolução Industrial, a poesia foi transformada em mercadoria. Nesse cenário, totalmente desprovido de magia é que Renato dá vida ao seu magnífico soneto inglês estruturado sobre seus 14 versos rigorosamente decassílabos.

O grande ícone da Revolução Industrial é, sem dúvida, a fábrica. E a fábrica, imediatamente, nos remete à linha de montagem, à produção em série. Foi na linha de montagem que a poesia transformou-se em mercadoria dentro da divisão social trabalhista promovida pelo Capitalismo. Em uma clara alusão à Revolução Industrial, Renato Passos de Barros fala da segmentação da produção. Do trabalho como algo contínuo, repetitivo, mecanizado, e monótono. Da produção em larga escala onde a inspiração para a sua alegoria “poesia” (mercadoria) é meramente o prazo de entrega. “é minha inspiração o prazo de entrega!... / pois o ócio criativo nada cria...”. Se a função do operário era apertar parafuso, era isso que ele fazia o dia inteiro. Essa segmentação da produção tirou do trabalhador a visão do todo. Não se sabia o que produzia e, consequentemente, o valor do que se produzia. “e inicia a arte final noutras vias /confirma a criação, mas antes nega/”. A Revolução Industrial destruiu as relações comunitárias. Dentro do seu novo sistema de produção, não havia opções para os artesãos, já que as fábricas eram quem dominava. Não tinha como o artesão concorrer com as fábricas por isso sua única alternativa era se render à escravidão capitalista. E isso responde à pergunta do último verso do segundo quarteto “se falta inspiração pra poesia / só sobra transpiração quando alega / tanta dor no esforço do dia a dia... / escravidão!... por que então não renega?”

A mecanização e desumanização do trabalho robotizou os trabalhadores. O filme “Tempos Modernos” de Chaplin mostra, com muito humor, essa questão. Não havia tempo para se pensar em mais nada. As máquinas tinham de trabalhar a todo vapor em exigência ao mercado que se alargava. “nada pensa enquanto o braço trabalha...”. O ritmo alucinante das fábricas era enlouquecedor e o ócio criativo foi sacrificado em nome do lucro. Lazer sempre existiu, mas o lazer institucionalizado só passou a existir após a Revolução Industrial. Esse lazer, porém, tem cunho funcionalista dentro da ordem trabalhista que se estabeleceu nessa segunda fase do Capitalismo e visa estabelecer razões e causas para justificá-lo. O trabalhador da fábrica, desse período histórico, não tinha tempo para lazer em função da sua exaustiva jornada diária de 14 horas “O que costumava ser um esforço prazeroso para o artesão passou a ser labuta para o operário.” Zygmunt Bauman – Comunidade (página 32). De forma inédita e poética, o poeta brasiliense fala dessa condição do trabalhador nos três últimos versos do terceiro quarteto: “crava raiz quadrada em solo pobre / calcula o fim do tempo e enfim descobre:/ há sobrevida e nisso a vida falha!”. No final do soneto, o sujeito poético surpreende o leitor, vira o espelho e, numa perspectiva absolutamente pessimista, dá voz ao operário que, resignado da sorte, aceita sua condição de trabalhador esmagado, explorado, massacrado por horas exaustivas e condições desumanas de trabalho como se fosse uma punição divina. “tão inútil quanto fútil (o registro) / poético desse instante é... sinistro”. Como dizia Karl Marx: “O capitalismo moderno derrete os sólidos...” mas a poesia é revolucionária e não se permite moldar.

Edna Frigato
Enviado por Edna Frigato em 04/11/2017
Reeditado em 04/11/2017
Código do texto: T6162206
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