Por que ler Hermann Hesse?
Hermann Hesse foi um escritor subestimado em vida por parte do público e da crítica. Em 1946, ganhou o Prêmio Nobel com a obra “Demian”. Em 1949, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura com a obra “Sidarta”, mesmo assim, em 1962 depois da sua morte, parte da crítica ainda menosprezava seu nome e obra. Criado em um ambiente de rigidez cristã, os pais de Hesse planejavam seu futuro como pastor, pois ambos eram missionários protestantes. Indo de encontro aos planos dos pais, Hesse rebelou-se e fugiu do Mosteiro de Maulbronn ao qual foi enviado para seguir seu destino de pastor. Em 1891, emigrou para Suiça rompendo assim sua ligação com a família e buscando seguir seu verdadeiro desejo: ser escritor. Hesse trabalhou longos anos como livreiro e operário, sua formação intelectual foi balizada pelo autodidatismo e a extrema dedicação à literatura.
Em 1911, uma viagem para Índia definiu um dos traços marcantes das obras de Hesse, seu contato com o budismo e a consequente influência de tal filosofia estiveram presentes, fortemente, em sua vida e criação literária. A eclosão da Primeira Guerra Mundial abalou emocionalmente o escritor que se afundou na psicologia de Carl Gustav Jung para enfrentar tal período de crise psicológica. A influência Junguiana é outro traço forte nos livros de Hermann Hesse. A filosofia oriental e a psicologia analítica de Jung podem ser, entre outros, uma das características essenciais que tornam os escritos de Hesse únicos, conferindo à sua arte uma marca diferenciada.
Se Hesse foi menosprezado em vida levando considerável tempo para se tornar um escritor reconhecido e amplamente disseminado pelo mundo, por que, então, deveríamos lê-lo? O que faz de sua obra algo tão importante para a História Mundial da Literatura?
Não é em vão que com certa frequência, em conversas casuais, indico a leitura de Hesse para determinados leitores. Seus livros não são recomendáveis para qualquer etapa da vida ou para qualquer pessoa. Os temas abordados por Hesse alcançam um nível profundo de reflexão que necessita de certo preparo por parte de quem se aventura em sua leitura pela primeira vez. Costumo dizer que para encarar um enredo de Hesse é preciso estar cônscio da viagem interna que precisa ser feita, do contrário, o leitor corre o risco de não ser tocado pelas mais diversas interpretações e reflexões que seus escritos propõem, isso pode tornar sua obra maçante.
O meu primeiro contato com Herman Hesse foi através da leitura de um dos seus livros mais expressivos, “O Lobo da Estepe”, publicado pela primeira vez em 1927. É um dos romances mais representativos da literatura alemão e foi o primeiro a ser traduzido para o português. O enredo do livro gira em torno da figura de um misantropo, outsider, chamado Harry Haller, que dizem ter sido inspirado pelo amigo do escritor, um escultor chamado Hermann Haller, outros consideram que o personagem seria um alter ego do próprio Hesse que o utiliza a fim de tornar a história recheada de aspectos autobiográficos. Não importa a inspiração que culminou na criação, o que importa é com que maestria Hesse nos leva aos labirintos solitários e oníricos da vida de Harry, autodenominado um “lobo da estepe”.
“...agora me visto e saio, vou visitar o professor e troco com ele algumas frases amáveis, mais ou menos falsas, tudo isso contra a minha vontade, assim procede a maioria dos homens que vivem e negociam todos os dias, todas as horas, forçadamente e sem na realidade querê-lo; fazem visitas, mantêm conversações, sentam-se durante horas inteiras em seus escritórios e fábricas, tudo à força, mecanicamente, sem vontade; tudo poderia ser realizado com a mesma perfeição por máquinas ou não se realizar; e essa mecânica eternamente continuada é o que lhes impede, assim como a mim, de exercer a crítica à sua própria vida, reconhecer e sentir sua estupidez e superficialidade, sua desesperada tristeza e solidão. E têm razão, muitíssima razão, os homens que assim vivem, que se divertem com seus brinquedinhos, que correm atrás de seus assuntos, em vez de se oporem à mecânica aflitiva e olharem desesperados o vazio, como faço eu, homem marginalizado que sou.” ( O lobo da estepe)
A metáfora do lobo solitário, aquele que não consegue se adaptar à vida em alcateia como forma de descrever os pensamentos, sentimentos, de indivíduos que vivem à margem dos padrões sociais, solitários e sem encontrar eco no mundo e na época em que vivem. A figura de Harry é melancólica, no início do livro ele escreve uma espécie de tratado sobre ser da forma que é, creio que muitos que procuram a leitura de Hesse estão vivenciando um período de crise existencial extrema assim como o personagem, por isso, reitero que sua leitura não seja para todos, e sim, para quem está preparado psicológica e emocionalmente para entrar na mente de um lobo solitário, deixar-se sentir o que ele mesmo sente.
“Como não haveria de ser eu um Lobo da Estepe e um mísero eremita em meio a um mundo cujos objetivos não compartilho, cuja alegria não me diz respeito! (...) E, de fato, se o mundo tem razão, se essa música dos cafés, essas diversões em massa e esses tipos americanizados que se satisfazem com tão pouco têm razão, então estou louco. Sou, na verdade, o Lobo da Estepe, como me digo tantas vezes – aquele animal extraviado que não encontra abrigo nem alegria nem alimento num mundo que lhe é estranho e incompreensível.” ( O lobo da estepe)
Harry decide que irá tirar a própria vida aos 50 anos de idade, ele se vê no direito de ceifar sua existência que lhe confere essa completa falta de sentido. Porém, ele conhece a figura dúbia de Hermínia, uma personagem misteriosa que ora se apresenta como sedutora mulher, simples e eufórica dada aos prazeres levianos da vida, ora é percebida por Harry sob o semblante de um jovem rapaz como se ele se projetasse na figura apaixonante de Hermínia. Hermínia o apresenta ao bon vivant Pablo, e pouco a pouco, Harry conhece o Teatro Mágico, um lugar de experiências ébrias, oníricas que o fazem questionar sua vida de contínuos embates internos entre as manifestações de suas duas almas, o homem e lobo. Assim, Harry vive a crença de estar preso entre a dualidade da pequenez do homem burguês e da força nobre do lobo solitário (o intelectual). De certa forma, a inserção no Teatro Mágico o leva a vivenciar a pluralidade de sensações até então desconhecidas que quebram a sensação do aprisionamento de uma alma em uma existência separatista e maniqueísta.
Nesse ponto, o livro toma um sentido rodopiante, a experiência vivenciada por Harry dentro do Teatro Mágico é uma forma de representar a descoberta de um mundo que até então estava embotado, apagado dentro da realidade condicionada em que Harry vivia como um indivíduo isolado e odioso, preso às concepções superficiais de bom e mau. Como diz na entrada do Teatro “entrada só para os raros”, a experiência não poderia ser transformadora para quem não estivesse pronto para ela, assim como enxergo a obra deixada por Hesse. Embarcar no Teatro, bem como em seus escritos é deixar de lado a razão na qual formulamos a maioria de nossa crenças e ilusões.
“Aprenda a levar a sério o que merece ser levado a sério, e a rir de tudo mais!” ( O lobo da estepe)
Há então o clímax que culmina em mortes de personagens através das mãos de Harry, tais mortes são cercadas de simbologias sobre a redenção, sobre a morte do Lobo que vivia em guerras contra o Homem dentro de Harry. A condenação pelos seus atos é da vida eterna. Harry assim, tem a chance de rever o mundo sob outros olhos, livre da prisão que sempre se manteve entre os uivos do Lobo e as pequenezas do Homem para entrar em um tipo de existência múltipla e integrada, sem dissociação entre o que ele é, queria ser o que foi projetado para sentir/ser.
As reflexões em “O Lobo da Estepe” são inúmeras, arrisco dizer que se tornam infindas a cada leitura que fazemos. Não é um livro para ser lido apenas uma ou duas vezes, mas várias e em diferentes momentos da vida, assim ele pode nos fazer embarcar em diversos tipos de espetáculos de um Teatro Mágico, assim como todas obras de Hesse: é um universo que apenas os raros (ou loucos) podem descobrir o portal de entrada. É preciso estar aberto para a obra de Hesse, deixar-se levar, aceita-la e abraça-la, e como nos mostra Harry, é apenas diante uma crise profunda que há a verdadeira consciência libertadora de que é preciso mudar algo, que todos pontos de vista que defendíamos estavam errados e desapegar-se deles para renascer para novas realidades e possibilidades.
Além de “O Lobo da Estepe”, Hesse possui outros livros tão densos e entorpecentes quanto: Sidarta, um livro fortemente influenciado pela budista, denso, repleto de viagens interiores, o enredo pode se tornar estranho àqueles que não possuem o mínimo de informação sobre o Budismo. É uma maneira maravilhosa de entrar em contato com um tipo de leitura diferente de tudo o que já foi feito dentro da literatura alemã. A obra “Demian” é considerada uma das principais do escritor.
O livro começa com o personagem Emil Sinclair durante sua infância. Cresceu em um lar religioso e “luminoso”, apesar de idolatrar este mundo luminoso sente-se diferente do resto de sua família já que não consegue abraçá-lo em sua plenitude, mas apenas enxergá-lo como se estivesse do lado de fora de toda a situação. A influência nietzschiana pode ser percebida claramente nesse enredo em que Hess trata da confusão mental, o niilismo que toma conta de um jovem que começa a tomar consciência da fragilidade dos laços parentais, da moral e da ética do Estado.
“Não creio que se possam considerar homens todos esses bípedes que caminham pelas ruas, simplesmente porque andam eretos ou levem nove meses para vir à luz. Sabes muito bem que muitos deles não passam de peixes ou de ovelhas, vermes ou sanguessugas, formigas ou vespas.” (Demian)
“Demian” é um dos personagens do livro que modificam completamente a forma de viver de Sinclair. Filosofava sobre a vida e incentivava Sinclair a enxergar a vida de maneiras diferentes. Ele representa o convite à viagem interior, a busca do autoconhecimento, características presentes em várias obras do escritor por conta da sua influência budista. A partir do contato com Demian e suas divagações, aos olhos dos outros não passam do falatório de um perturbado, Sinclair começa a enxergar as infinitas possibilidades que a vida lhe apresenta ao entrar dentro de si mesmo e reconhecer e vivenciar o mundo sombrio que há dentro de si para poder enxergar com maior clareza o que verdadeiramente é.
Essas três obras: “O lobo da estepe”, “Sidarta” e “Demian” são os pilares de toda obra de Hermann Hesse, para embarcar em tais livros é preciso, reitero, certo preparo para lidar com algo profundo, extremamente introspectivo e reflexivo. Ler Hesse é importante porque nos leva a ler a nós mesmos, a refletir sobre questões que até então estávamos cegos ou, simplesmente, embotados para tais análises interiores. Creio que aqueles que conseguem deixar os efeitos das palavras de Hesse lhes atingirem podem dizer com certeza que sua forma de ler quaisquer outros livros foi afetada, mas de uma maneira profunda, permitindo que possam absorver de cada detalhe, muitas vezes imperceptíveis, muito mais do que absorviam antes de embarcaram no mundo introspectivo e sombrio de Hermann Hesse.
Outras obras que valem a pena do autor são: “O jogo das contas de vidro”, “Debaixo das Rodas”, “O último verão de Klingsor”. Espero que a breve análise, que na verdade tem como objetivo ser mais uma indicação de leitura, tenha despertado o interesse daqueles que ainda não conhecem a escrita do alemão Hermann Hesse. Para aqueles que como eu admiram sua escrita, espero não ter pecado muito em minhas ponderações e que não deixem de reler e indicar esse grande nome da literatura alemã. Vale ressaltar que durante os anos que passei envolvida com a leitura e pesquisa sobre sua vida, não pude encontrar nenhuma biografia escrita em português, seja traduzida ou produzida por algum escritor nacional. A não ser o trabalho de Frederico Lucena Menezes, “Hermann Hesse – o personagem que se fez autor”, não encontrei outros livros que tratassem sobre a vida e obra de Hesse, sinal de que ainda é um autor, mesmo sendo autêntico e inspirador, infelizmente, pouco explorado.