DON JUAN DE MARCO, entre o amor e a loucura

DON JUAN DE MARCO, entre o amor e a loucura

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De acordo com Massaud Moisés (2006, p.323) o cinema sofreu o impacto da ficção literária, mas sem perder de mira suas características essenciais: adquiriu algo da preocupação de narrar. Neste sentido, é comum atribuir o sucesso de uma adaptação cinematográfica a uma excelente obra literária.

Para Moisés (2006, p.323) especialmente durante as décadas de 30 e 40, o cinema assimilou o interesse pelos filmes narrativos, não raro sugeridos por um romance. E neste contexto, grande parte da produção cinematográfica continua a ser de caráter narrativo. É importante frisar que, ao adaptar uma obra literária para o cinema, a obra adaptada deixa de ser a original de que partiu tão-somente posta noutra forma de expressão, para ser outra obra (MOISÉS, 2006, p.325). Isso ocorre em razão das características peculiares de cada um. O cinema é representação, registro no celuloide da ação da personagem, enquanto o romance é narrativo.

Don Juan de Marco, romance norte-americano escrito por Jean Black White, publicado no Brasil pela Editora Record em 1995, representa justamente uma adaptação literária para o cinema, dirigido por Jeremy Leven em 1994. O enredo é simples: Um rapaz usando uma máscara negra ameaça jogar-se do alto de um edifício. O jovem afirma ser Don Juan (Johnny Depp), o lendário conquistador de mulheres. Por ter perdido seu verdadeiro amor, caiu num estado de depressão profunda. O psiquiatra Dr. Jack Mickller (Marlon Brando) é chamado para salvá-lo. No início, o psiquiatra parece cansado, pronto para se aposentar. Mas, à medida que Don Juan começa a descrever sua vida amorosa, Jack sente-se revigorado. Ambos se envolvem num curioso relacionamento que beneficia até a mulher do psiquiatra, Marilyn Mickler (Faye Dunaway) sempre relegada a segundo plano pelo marido.

De acordo com White, a origem da lenda de Don Juan é obscura. Não se sabe ao certo sua nacionalidade, se espanhol, italiano ou até mesmo português. No entanto, sua lenda foi desenvolvida pelos ingleses, um povo muito mais frio, mas com um desejo ardente de calor (WHITE, 1995, p.7). O autor também atribui outras nacionalidades, como a Inglaterra, representada por Lord Byron que, assim como Don Juan, amou as ilhas gregas e um rol interminável de mulheres. Neste contexto, vale ressaltar que a lenda de Don Juan foi também eternizada na ópera Don Giovanni, de Wolfgang Amadeus Mozart.

A temática de Don Juan de Marco apresenta diversas características do Romantismo, especificamente do Ultrarromantismo (escola literária do século XVIII), tais como, o amor exagerado, o amor não correspondido, o desejo de morrer por não aceitar a realidade e o suicídio. Correlacionar o comportamento da personagem lendária com a atualidade é, sobretudo, questionar o comportamento do homem contemporâneo, que apesar de viver no século XXI, ainda traz consigo características diversas do Ultrarromântico. E neste sentido, o donjuanismo na atualidade sobrepõe à lenda e torna-se uma realidade. O mesmo acontece com o mito. De acordo com C. S. Lewis (2009, p. 42) o mito é sempre, num certo sentido do termo, fantástico, pois lida com o impossível e o sobrenatural. Neste sentido, a experiência vivida por Don Juan de Marco não apenas é grave, mas nos desperta um temor respeitoso (LEWIS, 2009, p. 43). Sentimos nela a presença de um poder divino.

Em Don Juan de Marco o papel do homem romântico/sedutor é questionado ao ser comparado ao homem do século XXI como uma impossibilidade inerente ao tempo. O excesso do romantismo que inspira o romântico torna-se completamente inadmissível ao homem moderno? A teoria se desfaz ao percebermos Don Juan, depois de decidir-se morrer, resolve realizar a sua última conquista. O Don Juan moderno deixa-se guiar pelos desejos românticos do sedutor Dom Juan mitológico, ultrapassando desta forma, qualquer desígnio de razão. Neste sentido, o homem que toma contato pela primeira vez com o que é para ele um grande mito, por meio de um relato verbal vazio, vulgar ou escrito de maneira cacofônica, descarta e ignora a escrita de má qualidade e dá atenção ao mito em si (LEWIS, 2009, p.44). A diferença é que, finaliza Lewis, ambos usam o mesmo procedimento, com o mesmo intuito da auto-realização.

Apresentar-se como um romântico excessivo faz parte da personalidade criada por Don Juan. Para ele a auto afirmação em um grande conquistador de mulheres também faz parte de seu disfarce. Fato este que percebemos quando o vimos recitar diante do espelho que fez amor com mais de mil mulheres, como se este dado comprovasse ser ele um grande conquistador para si mesmo. Neste sentido, sua fantasia é uma construção imaginativa que, de um modo ou de outro, lhe dá prazer, e é tomada por ele mesmo como realidade (LEWIS, 2009, p. 47). Neste aspecto, realidade e fantasia confundem-se como parte essencial para que o psiquiatra Jack Mickler possa analisar Don Juan. Vale ressaltar que, embora o amor tivesse quase sempre se submetido ao grande Don Juan, a morte vai ser o elo entre o homem romântico/sonhador e o homem moderno/razão. O pacto se dá quando Don Juan é arrancado das garras da morte apenas para se tornar presa do poderoso Don Octavio del Flores (WHITE, 1995, p. 24), no imaginário de Don Juan.

Os relatos de Don Juan têm grande influência para Don Octavio del Flores. Embora ambientado em New York, no hospício, como espaço real, e em outros lugares paradisíacos, como espaço da fantasia, a análise psicológica mergulha no passado como fonte de conhecimento para se compreender o presente de Don Juan. Jack Mickler como ouvinte, degusta os relatos como quem assiste a um filme e participa dessa narrativa trazendo para si a autoanálise de sua própria vida com sua esposa Merilyn. E o que vê o desaponta como triste realidade. Percebe que o tempo passou e com ele foi-se o romantismo que existia entre ele e a esposa quando jovens. Prestes a se aposentar e sem planos para um futuro, que para ele já não é mais atrativo, deixa-se envolver nos relatos e resgata o desejo de viver e fazer loucuras, o que só é permitido fazer a um homem louco ou até mesmo, um romântico como Don Juan.

O homem moderno, Jack representa o próprio tempo e o seu despertar para a realidade o induz ao questionamento dos fatos, como a falta de tempo, a efemeridade dos sentimentos, o amor adormecido e ao retorno ao início do romantismo. Os personagens em Don Juan de Marco preenchem a narrativa marcada pela temporariedade, presente e passado, como uma colcha de retalhos que se entrelaça em um mesmo tecido chamado amor. Don Juan ainda adolescente deixa-se tocar pelo amor de Dõna Inez dando início a sua perdição. Nesta relação marcada pela tragicidade destacam-se o adultério, a paixão e a loucura como características do Romantismo. A mãe de Don Juan, Dõna Julia, tem papel fundamental para despertar o desejo em Don Juan ainda criança. Neste contexto, a personagem é marcada por sua posição: de mãe/mulher amada/desejada à freira, de submissão ao pecado ou culpa. Nota-se que Dõna Julia tem forte contribuição para a formação psicológica de Don Juan. O desfecho do relacionamento de Don Juan com Dõna Inez, a fuga, e o de sua mãe, com a morte do pai, fazem com que Don Juan parta para um mundo para ele ainda desconhecido.

Vale ressaltar um traço peculiar em Don Juan de Marco que é a máscara usada por Don Juan e seu significado: a vergonha. O segredo é revelado a Dõna Ana como prova de amor. Outra personagem que, apesar da breve aparição no romance deixa sua marca, é a avó de Don Juan, Catherine de Marco. Sua presença é forte e impactante. Impressiona ao ser visitada por Jack. Desta visita o resultado é um istmo entre realidade e mentira, razão e loucura, que mexe com o psiquiatra ao ponto de deixá-lo sem saber no que deve ou não acreditar. No entanto, a personagem Bernard, o Baba, significa o mergulho de Don Juan nos braços de suas mil mulheres. Neste harém de mil e quinhentas mulheres Don Juan teve que se desfaçar travestindo-se de mulher para poder sobreviver entre as mulheres e esconder-se nos braços da sultana Gulbeyaz a Bootsie.

A fantasia e a realidade em Don Juan de Marco é delimitada como um jogo de xadrez. No hospício Jack Mickler faz uma aposta com o próprio Don Juan estipulando-a em dez dias. O ambiente do hospício como um lugar representativo para a loucura ou pacientes com distúrbios mentais, vê-se alterado devido à presença de Don Juan, que com a sua forte desempenho, mexe com o cotidiano das enfermeiras. Ao final do prazo estipulado Don Juan recebe a ordem de ser medicado. Neste aspecto, os sonhos passam a ser tratados com drogas que inibe Don Juan de sonhar.

O desfecho do romance transgrede o inesperado: Jack, Marilyn e Don Juan viajam juntos para um ilha paradisíaca. Movidos pelo desejo, loucura e sonhos, os personagens se deixam levar pelo sentimentalismo e encanto do amor. O psiquiatra sai de seu mundo particular e real, e resgatar com sua amada o pouco de tempo que lhes resta para renascer e viver o amor que sempre existiu entre eles, mas que estava adormecido. Merilyn surpreende por ser ela a razão do casal, ao tomar a decisão de mudar suas vidas deixando tudo para trás em busca do novo. Em relação a Don Juan, o final é o inesperado: encontra-se na praia com uma jovem e bela mulher usando uma máscara. Quem é? Ninguém o sabe, visto que não é revelado seu nome por White. Fica a cargo de o leitor decidir se é a amada Dõna Ana, ou o início de uma nova era de conquista amorosa de Don Juan de Marco.

REFERÊNCIAS

LEWIS, C. S. Um experimento na crítica literária. Tradução de João Luís Ceccantini. São Paulo: Editora UNESP, 2009.

MOISÉS, Massaud. A criação literária: prosa 1. São Paulo: Cultrix, 2006.

WHITE, Jean Blake. Don Juan de Marco. Tradução de Pinheiro de Lemos. Rio de Janeiro: Record, 1995.

ginaldo
Enviado por ginaldo em 22/09/2017
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