Sobre O Século das Luzes, de Alejo Carpentier

SOBRE O SÉCULO DAS LUZES, de Alejo Carpentier

(Goulart Gomes)

A expressão “Século das Luzes”, utilizada pelo escritor cubano Alejo Carpentier como título do seu livro, nos remete ao século XVIII, quando surge o movimento intelectual europeu denominado Iluminismo, caracterizado pela defesa da ciência e a racionalidade crítica no questionamento filosófico, em detrimento do teocentrismo, predominante na Idade Média, então considerada Idade das Trevas. Seus maiores expoentes foram Montesquieu, Locke, Voltaire, Rousseau, Diderot, Espinosa, David Hume, Adam Smith e Kant, que através das suas obras “iluminariam” o conhecimento humano. As ideias iluministas teriam influenciado o pensamento revolucionário, que provocou a ruptura com o Antigo Regime, e os movimentos independentistas na Europa e nas Américas. É neste período cronológico, cujo evento de maior significância foi a Revolução Francesa, que se passam os fatos descritos na obra de Carpentier.

Em sua obra, Carpentier realizará um passeio histórico pela virada entre os séculos XVIII e XIX, mostrando as contradições da Revolução Francesa, o domínio colonial europeu nas Américas, a escravidão e as lutas pela abolição, a condição da mulher, o racismo nas colônias, os conflitos imperialistas, as lutas pela independência e suas repressões, a ascensão de Napoleão e seus reflexos nas Antilhas, sempre exploradas e expropriadas.

O romance já inicia com uma metáfora à independência, quando três jovens – Carlos e Sofia (irmãos) e Esteban (primo) – se veem subitamente imersos em um novo modus vivendi, com o falecimento do pai da família. Neste momento inicial, uma certa desordem, anarquia se instala, como em toda “revolução”, com os jovens inebriados pela possibilidade de realização de seus sonhos, personificada inclusive pelos amontoados e livros e objetos espalhados pela mansão. É um momento de redescoberta pessoal, de total liberdade de ação, que será intensificado pela chegada de um estranho: Victor Hugues, um francês maduro e experiente, que terá influência decisiva em suas vidas dali por diante, e será a personagem central da obra. Victor se apresenta como alguém que teria negócios com o falecido pai dos jovens mas, a partir deste contato inicial, passa a interferir nas decisões dos mesmos. “Ilhados” em Havana, Cuba, passam a sonhar com um mundo de aventuras e descobertas, com viagens a outros locais, principalmente a Europa.

Na sequência, surge o negro Ogé, detentor de conhecimentos dos rituais mágicos do Caribe e de sua flora medicinal. Com seus conhecimentos, consegue a cura de Esteban, que sofria de terríveis crises respiratórias, não sem antes contar com a desconfiança e racismo de Sofia. Nesse ínterim, começam a eclodir movimentos revoltosos e/ou abolicionistas no Caribe. As cinco personagens decidem se proteger, saindo de Havana. Carlos fica em uma fazenda, no interior, e os demais vão para Point-à-Pitre (Port-au-Prince, Guadalupe). Durante a viagem, o autor dá a entender que Victor tentou agredir Sofia, sexualmente. É quando ocorre a revolução dos negros na ilha que hoje compreende a República Dominicana e o Haiti. Por esta descrição, entendemos que se trata do ano de 1791, quando Toussaint Louverture assumiu a liderança da insurreição dos escravos.

Neste momento o grupo se separa. Ogé decide ficar na ilha e participar dos movimentos. Esteban e Victor vão para a França e Sofia vai para Santiago do Chile. Quando chegam à França, naquele mesmo ano, se deparam com outro fato que irá acirrar os ânimos da Revolução: a tentativa de fuga do rei Luís XVI e de sua família, do castelo de Varennes, que colocará a opinião pública definitivamente contra ele e levará à sua decapitação e da rainha Maria Antonieta.

A partir do segundo capítulo, começam as grandes transformações na vida de Victor e Esteban, com a adesão de ambos aos ideais da Revolução Francesa. É quando Alejo Carpentier começa a fazer uma crítica aos “comandantes” da revolução e à condução que os mesmos dão a ela, mostrando suas contradições. Os ideais de “Igualdade, Liberdade e Fraternidade” são compartilhados apenas entre os brancos europeus. Mesmo aqueles que inicialmente defendiam a extensão dos mesmos direitos aos negros das colônias, gradativamente mudam de opinião, mantendo e até acirrando a escravidão e a discriminação. Esteban se torna um subalterno “escravizado” por Victor, que o mantém sob sua custódia. Ele é enviado para Baiona, na fronteira com a Espanha, para realizar a tradução de textos revolucionários, com o infrutífero objetivo de promover a revolução burguesa na Espanha. Em seguida, ambos vão para as Antilhas, onde Victor, como autoridade representante da Revolução, se torna um extremista fanático, cruel, sanguinário, racista (que gosta mais dos índios que dos negros), totalmente cego pelo Poder, responsável pela implantação do Terror e da guilhotina naquela região. Chega a ser chamado de Robespierre das Ilhas!

No texto A Queda do Escravismo Colonial: 1776-1848, Robin Blackburn relata a chegada de uma expedição ao Caribe, composta por seis embarcações e 1.200 homens, que rompeu o bloqueio britânico, comandada por Victor Hugues e Pierre Chrétien, em 1794. Ele desembarca em Guadalupe em 23 de abril, derrota um destacamento monarquista de 700 homens e a partir dali inicia uma guerra contra os donos de escravos e seus aliados britânicos. A guilhotina citada por Alejo Carpentier, realmente existiu. Segundo Blackburn “Os comissário republicanos levaram consigo uma guilhotina... Victor Hugues, ex-promotor em Rochefort durante o Terror e com experiência anterior nas Antilhas, logo se estabeleceu como chefe efetivo das forças republicanas. Os monarquistas capturados foram sumariamente executados”. Hugues iria organizar uma flotilha de corsários para atacar embarcações britânicas, espanholas e norte-americanas. “Hugues amealhou fortuna considerável para si e não se furtaria a manter a popularidade na metrópole por meio de propinas discretas às pessoas certas”, conclui ele.

A esta altura, Esteban já está totalmente decepcionado com os caminhos tomados pela revolução, e tudo que deseja é voltar a se encontrar com Sofia, por quem nutre um grande amor. Finalmente, Victor decide liberá-lo, pedindo, contudo, que ele leve antes uma encomenda a um seu correligionário, em Caiena (Guiana Francesa). Neste período, Carpentier cita outro conflito armado que eclode, entre a França e os Estados Unidos, pelo que depreendemos já estarmos entre 1798 e 1800.

Sublevações ocorrem por toda a parte, na América. A ascensão de Napoleão Bonaparte é brevemente citada. De Caiena, Estaban parte para Paramaribo (Suriname), onde observa as diferenças da localidade, colonizada pelos holandeses, das demais, colonizadas pelos franceses. Ainda neste quarto capítulo, o autor trata da relação dos brancos com as mulheres negras. Enquanto era natural e aceitável a relação do homem branco com a mulher negra (habitualmente utilizada apenas como instrumento de prazer), “a mulher branca, ao contrário, nos raríssimos casos em que se juntava com o homem de cor carregada, era vista com abominação”.

No capítulo quinto o desfecho da história começa a se precipitar. Esteban, como um Ulisses após sua Odisseia, consegue voltar para a casa, envelhecido, cansado. Mas, ao chegar, encontra Sofia, ao contrário de Penélope, casada com Jorge, um sócio de Carlos, o que para ele é motivo de profunda decepção. Os dois têm outros desentendimentos, porque Sofia, que esteve à margem da dura realidade dos atos dos líderes da revolução, continua a acreditar nela e em seus ideais, ao contrário de Esteban, que por ter visto de perto no que ela se tornou, já não acreditava mais. Sofia defende que “nada grande podia ser feito na Terra sem derramamento de sangue”, que gostaria de ver uma guilhotina armada “na praça de Armas desta cidade podre e imbecil”, para horror de Esteban, que viu de perto as cenas mais abomináveis. Ainda assim, ele declara a ela a sua paixão, sendo rejeitado com veemência. Subitamente Jorge, o marido de Sofia, morre, vítima de uma epidemia que atingiu a cidade, provocando nela uma transformação. Ela havia se “refugiado” em um casamento profundamente infeliz e, a inesperada viuvez, fez vir à tona, outra vez, seus desejos de liberdade. Ela quer ir para Caiena, se encontrar com Victor, que passamos a saber ser a sua grande paixão. Naquele ano de 1801, intensifica-se a caça aos propagadores de ideais revolucionários em Havana. Enquanto ela está em um navio, no porto, agentes policiais invadem a mansão e descobrem panfletos revolucionários que eram guardados por Sofia. Esteban, para retardar a ação dos policiais e propiciar a fuga da prima, assume a responsabilidade, prolongando seu interrogatório. Ele é preso e enviado para cumprir pena na Espanha.

Sofia parte para Caiena, onde irá encontrar um Victor envelhecido, gordo, agora já Agente do Consulado, escolhido pelo próprio cônsul Bonaparte. Os primeiros momentos com Victor, são de realização da sua paixão. “Sofia descobria, maravilhada, o mundo da sua própria sensualidade. De repente, seus braços, seus ombros, seus seios, seus flancos, suas dobras começavam a falar”. Depois, começam as decepções com Victor, totalmente “vendido” às decisões bonapartistas. Uma delas, a reimplantação da escravatura nas Américas, em 1802, que obriga Victor a partir à “caça” de negros rebeldes, para reescravizá-los, com o que horroriza Sofia.

No último capítulo do livro, Sofia abandona Victor e vai para Madri, onde após muitos esforços consegue o indulto para Esteban. Já estamos em 1808, justamente o momento em que as tropas napoleônicas invadem a cidade, e ambos desaparecem nas ruas, lutando contra os invasores. Morrem como os revolucionários que sempre foram. Devemos, ainda, lembrar, que a invasão napoleônica na Espanha é o estopim para os movimentos independentistas na América Espanhola. Ironicamente, Cuba, a terra-mãe dos protagonistas do romance, seria uma das últimas nações americanas a conquistar a sua independência do controle espanhol.

BIBLIOGRAFIA

BLACKBURN, Robin. A Queda do Escravismo Colonial: 1776-1848. São Paulo: Editora Record, 2002. (p. 244 a 249).

CARPENTIER, Alejo. O Século das Luzes. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 3ª. Edição.