Análise Literária do soneto "Fotofobia" por EDNA FRIGATO

fotofobia

fotofobia... sem medo de luz!...

reserva imagem contra exposição!

se tem que mostrar pra ser, avestruz

será num buraco de escuridão

lá ficará sempre só... só que não...

leva a leva discreta e me conduz!

feliz carrego contigo essa cruz

nosso estandarte!: zero exibição!

fotofobia... sem medo de fotos!

eu sei! pra milhares isso é sucesso!

e vai causar!... provocar terremotos!

com vistas e curtidas em regresso

fotomania!: doença sem cura!

viraliza a mente e curte a tortura

RENATO PASSOS DE BARROS (03/03/2017)

Análise Literária do Soneto "Fotofobia" por Edna Frigato

Na primeira leitura, tem-se a impressão que "Fotofobia" não é uma poesia engajada, que não encontramos nela o forte teor crítico-social tão presente na maioria das obras de Renato Passos de Barros. Numa segunda leitura, o recorte social feito pelo autor já aparece com nitidez e o viés pelo qual o Poeta aborda o tema surge junto com o conceito sociológico de alienação. Não é difícil perceber que o regime capitalista é uma das pragas do mundo pós-moderno e que se alastra por todos os cantos, tornando-se, cada vez mais, eficiente e poderoso já que carrega, dentro de si, a semente da destruição, a mesma que, contraditoriamente, o alimenta e renova. Entre tamanha selvageria e crimes invisíveis, ele se alastra e dissemina, por todo o planeta, uma carga pesada de alienação. Como uma nuvem oculta, essa alienação que mais se assemelha a uma lavagem cerebral extrapolou todos os limites e alcançou a arte, tornando-a a sua mais nova serva, operária a serviço do sistema: a arte para o consumo. Essa ruptura da arte com belo, tornando-se arte só pela arte, denota que o sistema capitalista a tornou mercadoria, monopolizou até o impalpável cujo senhor absoluto da beleza se esconde nos subterrâneos da memória do Homem, bem como a forma mais belas de protesto contra a tirania do sistema.

Mas, há sobreviventes. O Poeta Marxista Brasiliense que o diga. Em "Fotofobia" há uma coerência extraordinária ancorada no conceito de fugacidade que movimenta os ponteiros da mediocridade capitalista. São tempos em que tudo é passageiro e líquido e as pessoas tornam-se cada vez mais vazias e ocas. A necessidade de preencher esse vazio faz crescer, vertiginosamente, a exposição em redes sociais. O brilho dos holofotes das selfies amalgamou-se na medida exata para preencher tal vazio de dimensões assustadoras. O ser humano perdeu a noção de quem é, por isso, precisa ser lembrado o tempo todo por outros que ele existe, que tem valor e esse valor é mensurado através da quantidade de "likes" que recebe em suas belas selfies, caprichosamente, retocadas no Photoshop. Como uma droga essa alegria, essa adrenalina acaba de forma repentina, e o “fotomaníaco” precisa de mais e mais selfies para tapar seu vazio existencial. Para provar a ele mesmo que ele é o que não é, ou é o que, desesperadamente, tenta ser. Nesse sentido, as afirmações de Heidegger soa quase como Profecia: "o tempo é apenas uma passagem fatal para o individual". O individual nos remete à solidão, e, na solidão, busca-se a aceitação, o pertencer, o querer ser.

Nesse cenário quase apocalíptico, surge "Fotofobia" metamorfoseada de crítica para esse momento histórico tão peculiar. Logo no primeiro quarteto desse belo soneto inglês decassílabo, a ironia elegante (que já se tornou marca registrada do Poeta Renato Passos) aparece como carro-chefe dessa estrofe. As antíteses (ocultação/fotofobia /exposição; luz/escuridão) sinalizam à ambiguidade da pseudo camuflagem do avestruz: esconde a cabeça oca e mostra o volume da bunda (qualquer semelhança com o padrão de beleza vigente é mera coincidência): "se tem que mostrar pra ser, avestruz/ será num buraco de escuridão". No segundo quarteto, os homônimos perfeitos: leva (verbo) e leva (substantivo) reafirmam o paradoxo da exposição versada no primeiro quarteto. E, nesse mesmo quarteto, o autor declama a plenos pulmões e à luz da etimologia do mote sua aversão e repulsa pela exposição com o estandarte "exposição zero". No último verso, revela-se uma segunda pessoa do discurso, não através dos flashes dos paparazes, mas pelo uso incontestável dos pronomes "nós", “nosso”, “contigo”. Embora explícito, essa segunda pessoa (o interlocutor) está bem protegida nos vocativos (em sujeito oculto) dos verbos imperativos “reserva” e “leva”.

No terceiro quarteto, o autor demonstra muita intimidade com os apetrechos da narrativa, da construção poética ao fazer uso da anáfora de forma inusitada e surpreendente, já que "foto" nada mais é que o efeito da luz sobre uma determinada imagem. A obsessão dos “fotomaníacos” brilha com força total na provocação nada velada: "eu sei! pra milhares isso é sucesso!/ e vai causar!.../ provocar terremotos!/ com vistas e curtidas em regresso". Sem perder o tom irônico e sarcástico, o Poeta encerra o soneto com o maravilhoso dístico e frisa, com vermelho-sangue, a patologia dessa doença sem cura, numa também sociedade doente, usando com a mestria dos raros o verbo apropriadíssimo e contextualizado na virtualidade do nosso mundo real: viraliza. Nesse Soneto, percebe-se o tom prosaico, simples, despretensioso e inteligente que vibra nas notas poéticas da arte de Renato. A sua familiaridade com a estrutura e os elementos da arte de sonetar, bem como a facilidade com que manuseia palavras, figuras de linguagem e afins, como se fosse um experiente malabarista no picadeiro da poesia. E é esse seu jeito recheado de sarcasmo, mas simples, despretensioso e original que encanta com a poesia e seduz com a inteligência literária, numa espécie de transgressão abstrata, provando aos amantes da poesia que as produções que simbolizam a arte podem e devem suscitar reflexões sem descartar o encanto e a beleza própria da Arte.

(Edna Frigato) 14/03/2017

Edna Frigato
Enviado por Edna Frigato em 14/03/2017
Código do texto: T5941226
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