Análise das obras de Stephen King
Christine
Christine
“Sua obsessão descontrolada.
Sua fúria inesgotável”.
Sua fúria inesgotável”.
A análise que seguirá é sobre o livro “Christine” publicado em 1983 do autor Stephen King. Assim como tantas obras do escritor, Christine foi adaptado para o cinema (1983) sob a direção de John Carpenter (“O Enigma de outro mundo”), porém o filme se distancia um pouco do enredo do livro, deixando a desejar no que é o essencial da história: o poder de uma obsessão. King traz, em quase todos seus enredos, personagens que são obsessivos por algo ou possuídos por sentimentos neuróticos, mas nesta obra o principal personagem é um carro modelo Plymouth Fury 58 de um belo vermelho vibrante. Os aficionados por carros poderão entender a obsessão que Arnie sente ao ver o Fury pela primeira vez, mas não é um tipo de obsessão normal, se é que podemos considerar que alguma seja.
O enredo do livro gira em torna de três personagens: Arnold “Arnie” Cuningham seu melhor amigo Dennis Guilder e claro Christine, o Fury 58 que Arnie compra de um estranho homem, Roland D. LeBay, e restaura. Há também Leigh Cabot, uma bela jovem recém-chegada no colégio, que se torna o elemento chave para o fim da amizade entre Arnie e Dennis. A história de Christine não é apenas sobre a obsessão de Arnie pelo seu novo carro e sua consequente transformação sobrenatural por conta disso, há aspectos obscuros que King vai deixando entrever. Diferente de tantas outras histórias suas, em que o horror se manifesta rapidamente, aqui o autor adquiri um ritmo mais lento, dando pistas de que existe algo muito estranho no carro de Arnie. A própria ideia de que um carro possa ter vida própria é suficientemente inacreditável, mas King consegue tornar o absurdo em algo tão real e crível que começamos a temer Christine como se teme um personagem psicopata ou um espectro diabólico.
A primeira parte do livro é narrada pela voz e visão de Dennis Guilder, ele nos dá pistas de como seu amigo Arnie sempre fora visto como um perdedor, humilhado desde a infância e com problemas de acne que o deixavam, realmente, feio. Dennis é o oposto de Arnie, sua família é bem entrosada enquanto os pais de Arnie o controlam e manipulam o tempo todo exigindo que seja bom com as notas e entre em uma boa universidade. Dennis joga futebol americano e se dá bem com as garotas, Arnie ao lado de Dennis é sempre a figura do perdedor, mas os dois se amam, pois, é o único verdadeiro amigo que Arnie possui. Dennis passou boa parte da infância e da adolescência salvando o amigo dos constantes episódios de humilhação.
Com a entrada de Christine na história a amizade de tantos anos entra em declínio, bem como, a personalidade pacata, dócil e introspectiva de Arnie.
Arnie vê o carro enquanto volta do colégio com Dennis que está dirigindo, ele implora para Dennis parar o carro e vai ver Christine, ela não passa de uma sucata estacionada no quintal de um homem velho. Através da visão de Dennis podemos notar o cintilar estranho nos olhos de Arnie quando ele toca a lataria de Christine, ele compara aquele tipo de olhar que vê no amigo como se ele estivesse vendo o primeiro amor da sua vida, não um carro, mas uma garota. Nesse momento conhecemos Roland D. LeBay em vida, usando um colete ortopédico encardido e fétido, um sotaque caipira e bonachão envolto em xingamentos e mau humor, um velho solitário e ex soldado da guerra. Dennis não gosta de Roland D. LeBay que vende o carro por um preço muito baixo à Arnie, como se quisesse se livrar dele, mas há uma estranheza naquela relação, como se Roland LeBay estivesse apenas esperando o comprador certo para sua Christine e Arnie tivesse sido atraído até lá. Os dois fecham negócio e a partir de então a vida de Arnie e sua família transforma, no mau sentido.
O primeiro elemento de estranheza e sobrenatural é percebido por nós, leitores, quando Christine passa a se restaurar sozinha, sem o trabalho de Arnie. Como um bom mecânico ele a leva para garagem de Will Darnell (Faça você mesmo) e passa a trabalhar nela, incansavelmente, mas mesmo que Arnie passe a maior parte do tempo mexendo em Chrstine, o dono da garagem nota como ela está se tornando nova rápido. O próprio Arnie sabe disso, mas ignora dizendo a todos que tem se empenhado muito em deixa-la restaurada. O carro é motivo de desacordo em casa, ele passa a responder e enfrentar os pais, principalmente a controladora mãe Regina, sua acne desaparece, ele passa a se vestir diferente, falar e se locomover de uma nova maneira. O velho Arnie desaparece sobre essa nova versão que cospe palavrões e é debochado. Até mesmo sua aparência sofre uma inversão, Dennis repara ao olhar para o amigo como seu rosto está envelhecido e de alguma forma não parece mais Arnie e sim, Roland LeBay, que morreu logo depois que se livrou de Christine.
O que notamos a partir de então é a relação cada vez mais simbiótica entre Arnie e Christine, quando está atrás de seu volante ele sente-se capaz de tudo, não há medo ou humilhações. Arnie não percebe sua total devoção e obsessão com o carro e por isso afasta de todos à sua volta, incluindo a bela Leigh Cabot, a garota mais linda da escola, com quem estava saindo e namorando. Na segunda parte do livro temos um narrador onisciente depois que Dennis sofre um terrível acidente jogando futebol americano e precisa ficar longos meses no hospital.
Nessa parte do livro as coisas se tornam obscuras de uma maneira típica do Stephen King fazer. Começa a série de assassinatos inexplicáveis por ataque de um carro. As vítimas são todas da gangue de Buddy Repperton, um antigo valentão da escola que batia e acabou destruindo Christine por vingança contra Arnie. Um por um de sua gangue é morto de forma brutal, e um carro sempre está envolvido nas mortes, o que chama a atenção de Junkins, um detetive da polícia local.
Aqueles que cercam Arnie, como seu pai, Dennis e Leigh passam a desconfiar que o garoto esteja envolvido de alguma forma nessas mortes, mesmo possuindo álibis convincentes, porém, ninguém consegue falar disso em voz alta. O desconforto em relação a Arnie só cresce em torno de todos, pois ele está cada dia mais irreconhecível e usando colete ortopédico depois de algum jeito misterioso que deu nas costas ao consertar Christine. Porém, este colete Roland LeBay também usava. Quando Arnie vai visitar Dennis no dia de ação de graças no hospital, o amigo nota sua transformação drástica e pede para ele assinar novamente seu gesso da perna quebrada, Arnie assina e para surpresa de Dennis quando compara mais tarde com a assinatura feita há algumas semanas na outra perna, não é a mesma, Arnie está possuído por algo e Dennis acaba sempre lembrando-se do antigo dono de Christine, o velho mal encarado e estranho, Roland LeBay.
O que acontece daí por diante é o total desmoronamento das relações de Arnie com todos, inclusive consigo mesmo. Ele próprio não consegue mais se reconhecer quando está longe do seu carro. As mortes continuam e Christine, autogovernada, mata o detetive Junkins e o dono da garagem onde Arnie a estacionava, Will Darnell. O primeiro porque estava desconfiando e chegando a certas conclusões perigosas sobre os acidentes e o segundo por tê-la visto chegar sozinha na garagem, vejamos como King constrói aqui uma atmosfera macabra e sobrenatural acerca de um carro amaldiçoado. Há dois caminhos que podemos seguir a partir do momento que Dennis unido à Leigh passam a investigar o passado de Christine e Roland LeBay: o carro está sendo amaldiçoado pelo espírito do antigo dono ou havia um espírito no carro que possui quem o detém?
“O que seria? Alguma espécie de Afrit, um demônio árabe? Um carro comum que alguma forma tinha se tornado a perigosa e fétida moradia de um demônio? Uma sobrenatural manifestação dos restos da personalidade de LeBay, uma casa mal-assombrada infernal que rodava sobre pneus Goodyear? Eu não sabia. Sabia apenas que estava assustado, aterrorizado. Eu achava que não ia conseguir ir em frente com aquilo”.
A filha de LeBay morreu engasgada com um hambúrguer no carro, e ele não fez nada para ajuda-la enquanto sua mulher aparentemente se matou dentro do carro com monóxido de carbono. As duas mortes seriam uma forma de sacrifício em que LeBay conecta seu espírito com a máquina mesmo após da morte? LeBay era um homem ruim ou foi possuído por algo assim como Arnie? Aqui entra o elemento “Coisa Ruim” presente nas histórias de King que alteram completamente o rumo da vida dos personagens afetados por Ela.
Em alguns momentos percebemos que Christine, independente de seus donos, age por si própria, como se possuísse artimanhas, sentimentos diabólicos que se fundem à mente daquele que a controla. É um objeto amaldiçoado mesmo antes de ter sido de Roland LeBay, porém, o espírito do homem está possuindo Arnie, fazendo-o se tornar uma cópia do que foi. Para Christine ter tal poder precisaria de mentes como a de LeBay e a de Arnie, enfraquecidas de alguma forma. O irmão de Roland LeBay, George, ao conversar com Dennis enquanto o mesmo está investigando, relata que o irmão nunca foi um bom homem, era violento e briguento, e foi expulso do exército por isso. Um gênio como o de Roland LeBay somado ao poder diabólico de Christine nos dá o background do que vem a ser a maldição do carro. Arnie por ser um rapaz vulnerável e humilhado a vida toda ao entrar em contato com tal poder foi rapidamente envolvido pela obsessão, pela sede de poder e de vingança por todos que o humilharam.
Christine derrama bastante sangue e faz uma tremenda carnificina antes de ser vencida por Dennis Guilder e Leigh Cabot em um confronto violento ao fim do livro. Dennis arquiteta a ideia e acaba contratando um caminhão que tira entulhos do esgoto, o dono da máquina a chama de Petúnia. Com ajuda de Leigh ele atraí Arnie, já completamente transformado, para antiga garagem de Will Darnell, e lá acontece o desfecho do livro. Após ver ambos juntos, Dennis e Leigh, Arnie chega ao ápice de sua raiva e ausenta-se da cidade com a mãe, driblando-a (algo que o antigo Arnie jamais faria), isso para deixar Christine fazer seu trabalho sujo de eliminar os “bostas” traidores: Dennis e Leigh. Seriam suas últimas vítimas.
Na garagem, o plano de Dennis e Leigh está correndo bem até o momento que Christine se esconde sem que eles a percebam, Leigh corre para fechar a porta e o Fury 58 vermelho acende seus faróis (que parecem olhos diabólicos) e passa a tentar matar Leigh a qualquer custo. O mais importante no desenrolar dessas últimas cenas são todas visões que Dennis e Leigh tem do carro, ele é controlado por um cadáver em decomposição, o próprio Roland LeBay, que tem ao seu lado o corpo de Michael, pai de Arnie, morto por monóxido de carbono. As descrições macabras das visões feitas por King é o ponto alto do horror na história. Christine traz dentro de si todos aqueles que já matou, incluindo a filha e a mulher de LeBay, mortas nos anos 50.
“Os destroços do carro estremeciam de alto a baixo. Era a coisa mais horrível, mais fantasmagórica que eu já tinha visto em toda a minha vida. Ela estremecia inteira, estremecia como um animal que ainda não está ... inteiramente ... morto. Metal bateu nervosamente contra metal. Barras de torção clicavam ritmos de jazz trêmulas contra os pontos de conexão. Enquanto eu assistia, um contraponto torto que jazia no chão se endireitou e deu meia dúzia de cabriolas até aterrissar nos destroços”.
Após uma luta arriscada contra Christine, Dennis consegue fazer Petúnia funcionar e esmagar o Fury 58, definitivamente, mesmo que ela ainda dê sinais que está se restaurando, ele continua passando por cima do carro inúmeras vezes enquanto a lataria se retorce “parece o grito de uma mulher” como descreve Leigh em total assombro. Eles conseguem derrotar Christine na garagem de Darnell, porém, como vemos no Epílogo, Christine nunca morre, o que está nela jamais morrerá. Dennis nos conta o que aconteceu após o confronto com Christine, passados 4 anos. Ele e Leigh seguiram rumos diferentes, ela se casou e mudou, porém, eles trocam cartões postais. Arnie morreu em um acidente com a mãe enquanto iam para a faculdade que ele havia escolhido no mesmo momento em que derrotavam Christine. O acidente de Arnie, segundo a polícia, foi misterioso como se o furgão em que estavam tivesse sido esmagado por todos lados, o que nos mostra a conexão entre Christine e Arnie, um só poderia viver com o outro.
Christine está entre os livros mais assustadores que King escreveu sobre obsessão e possessão, ao lado dele podemos colocar “Desespero” que também envolve estranha possessão dos habitantes de uma cidadezinha por algo antigo e maligno que vive no subsolo de uma mina, assim como este que vivia em Christine. Todos que entravam no vermelho Fury 58, podiam sentir esse vago odor de morte e decomposição, algo antigo e maligno vivendo nela. No fim do Epílogo, Dennis deixa nas entrelinhas que está preocupado com algumas notícias que andou lendo nas páginas policiais sobre a morte de um homem por um carro desgovernado, mesmo que Christine tenha sido esmagada e compactada em um pequeno bloco de metal retorcido, há forças que nunca dormem, e ela tinha uma habilidade e tanto para se restaurar. O fim é inconcluso deixando a tensão que guiou toda história pairando no ar sem uma solução definitiva, algo que King faz, majestosamente, bem em seus desfechos.