A Dócil (Dostoiévski)
O inominado narrador discorre os fatos em retrospecto à cena à sua frente, causando no leitor circularidade no tempo. Seria como se estivesse sentado em uma cadeira em movimento circular e os as palavras ditadas em torvelinhos o transportasse ao passado, passo a passo, fazendo-o se sentir na pele do agiota. O estalo mágico do start se daria a partir do olhar firme e triste à loira de quase 16 anos de idade, deitada sobre às duas mesas.
“Eu sou uma parte daquela força que quer o mal, mas cria o bem...”. Esta frase de Mefistófeles, na obra O Fausto, é dita pelo penhorista na página 19, expressando seu caráter dual em constante conflito. O homem conta toda a história ocorrida andando pela casa e rodeando o corpo da loira de olhos azuis. Preocupa-se em lembrar os detalhes e ora conta para si, ora conta para um julgador invisível.
Na página 33 e 34, o agiota diz: “ Sou mestre na arte de falar em silêncio, passei minha vida toda conversando em silêncio e em silêncio acabei vivendo tragédias inteiras comigo mesmo”. Nessa fala, ele demonstra a hipocondria que assola sua alma e os monólogos travados consigo. É um sujeito orgulhoso, queria que krotkaia (assim chamo a moça sem nome na obra) dele não tivesse dó, no entanto, pusesse-se de joelhos em sua frente por todas a infelicidades que ele passou. Personifica em krotkaia, o mundo. Este, deveria se humilhar e se redimir por tudo que ele sofreu. Na página 43, vemos essa afirmação: “É um ser duro, orgulhoso e não precisa de conforto moral de ninguém, sofre em silêncio”.
Antes de se casar e sua esposa adoecer (as personagens de Dostoiévski, geralmente padecem de febre quando submetidas à crises morais), seu objetivo era ganhar 30 mil rublos em 3 anos com a caixa de penhores que abriu, quando ganhou uma herança de 3 mil rublos de sua tia. Na página 60, receoso de perder a jovem, percebe que um amigo é preciso preparar, moldar e conquistar, não basta trazer para casa no intuito de não se sentir só. Nisso, muda o tratamento com a mulher. Porém, na página 77, ao vê-la cantar e saber por Lukéria (a empregada) que ela só cantava quando ele não estava em casa, afoba-se ao concluir que ela o está esquecendo, pois ele está ou não está em casa é indiferente para a moça. Nisso, o leitor que mergulha fundo na leitura, sente os esbarrões das pessoas, em virtude do desnorteio de se ficar parado na rua olhando para um ponto. Após, o sujeito pega a carruagem e roda sem destino. Que pensamentos afligem o coitado?
Ao retornar para casa, percebe-se o modo inteligente (proposital ou não) de se evitar um conflito e descarregar a frustração ao sair pelas ruas da cidade, regressando ao lar com cabeça fria. Digeriu as ideias, desfragmentou o disco rígido da consciência ante o impacto do desdém de sua amada.
O homem se humilha; tenta pegar a mão da jovem e beijar-lhe os pés; em vão. Contenta-se em beijar o lugar onde ela pisou. Pede para beijar seu vestido e diz ser seu cachorrinho. Cairia bem como trilha sonora desse momento, a música “Ne me quitte pas” do cantor belga Jacques Brel, composta em 1959, embora a narrativa russa seja de 1876. Na parte final dessa canção há versos pertinentes à cena: “Deixe-me se tornar a sombra da tua sombra, a sombra da tua mão, a sombra do teu cão”, “Não me deixe”.
Infelizmente, krotkaia já era totalmente incapaz de amá-lo. Embora, não tenha sido capaz de traí-lo com o tenente Iefímovitch (desafeto de seu marido), quando teve oportunidade, já entando desgastado o projeto de amor, o qual teria iniciado ao dizer aquele titubeante SIM, quando pedida em casamento. Tal conflito interno culmina no inusitado desfecho da obra.
Mas,
Nem um bilhete deixado?
E por causa de 5 minutos?
Para o usurário, as leis não valem mais. O sol, significado de nascimento a cada dia, surge-lhe natimorto. Qualquer esperança à sua frente, impingida está pela nódoa do desânimo.
Na página 101, a última frase do romance conduz o leitor a imaginar qual o destino do homem de 41 anos, após o fechar do livro: “ Suas botinhas estão junto à cama, como se esperassem por ela... Não, falo sério, quando a levarem amanhã, o que vai ser de mim? ”