Análise das obras de Stephen King
Misery – Louca Obsessão
 
“A ternura dela não incluía deixar a porta do quarto destrancada, mas isso não era problema. Ele não estava louco de dor e com sintomas de abstinência como da outra vez. Coletara quatro grampos de cabelo dela como um esquilo coletando nozes para o inverno, e os escondera sob o colchão junto com os comprimidos”
 
Um dos livros que compõe as obras menos conhecidas de Stephen King, Misery – Louca Obsessão foi publicado no ano de 1987 e ganhou adaptação para cinema sob a direção de Rob Reiner em 1992. O filme segue de maneira fidedigna a obra literária. Arrisco dizer que em Misery encontramos o ápice do terror psicológico característico da escrita de Stephen King. O escritor explora aspectos atordoantes do comportamento humano como a obsessão, fanatismo, psicopatia, sobrevivência. Apesar de ser uma obra menos mencionada do escritor ela garante o lugar entre as histórias mais angustiantes e violentas que ele construiu.

A narrativa gira em torno de apenas dois personagens o escritor famoso Paul Sheldon e a enfermeira Annie Wilkes, com apenas essas duas figuras centrais King consegue desenvolver um enredo atordoante e assustador. A história inicia com Paul Sheldon preso em uma nevasca ao tentar voltar pra casa depois de um longo período isolado para finalizar seu último livro sobre a história de sua personagem mais famosa, Misery, é justamente essa sua criação que será o motivo dos seus maiores infortúnios quando ele é resgatado de um acidente na neve por Annie Wilkes.

Annie é a personagem que concentra em si todo o aspecto macabro da história. A princípio, é apresentada a nós como uma mulher na casa dos 40 anos, dócil, prestativa e afável que se autoproclama a fã número 1 dos livros de Paul Sheldon. Ela o resgata e leva para sua casa/sítio afastada. Lá, a enfermeira cuida dos ferimentos de Paul e o trata com carinho e zelo, porém, há indícios de que algo é estranho em Annie. Ela vive solitariamente e conversa com sua porca de estimação, seus hábitos são inquietantes, King constrói em torno dela uma sensação de que mesmo sendo tão falante, simpática e dedicada, Annie esconde algo, ela possui um jeito “errado”.  A partir do momento que ela passa a conversar com Paul sobre sua admiração começamos a notar os primeiros sinais de sua estranheza e loucura em relação à personagem central das histórias, Misery, a ficção e a realidade se misturam na cabeça de Annie de uma forma doentia.

Além disso, Paul nota que Annie o mantém impossibilitado de qualquer contato com o mundo exterior e justifica-se falando sobre o longo período de nevasca que a impede de leva-lo ao hospital. Aos poucos conhecemos as facetas psicóticas de Annie Wilkes, é muito interessante a construção dessa psicopata feminina que Stephen King elabora. Annie se mostra capaz de atos tão cruéis e desumanos que Jack Torrance possuído pelo Overlook em “O Iluminado” se tornaria inofensivo. Annie começa as sessões de tortura em Paul Sheldon após ler os rascunhos finalizados do seu último livro ainda não publicado. Ao descobrir que sua personagem favorita irá morrer no fim, Annie se revela. Nesse ponto da história acontece a reviravolta atordoante na condição de Paul. O escritor reconhecia que sua salvadora e fã declarada possuía algo de peculiar, mas só toma consciência da dimensão da sua loucura quando ela queima seu livro e o obriga a escrever tudo de novo de uma maneira que a agrade. Se o que Paul não escreve não a agrada, Annie realiza seus atos de tortura física e psicológica.

A dócil enfermeira em suas sessões de tortura chega a quebrar os ossos já fraturados das pernas de Paul mais de uma vez, deixa-o sem remédios para dor ou injeta sedativo forte, deixa-o sem comida e sem água o que o obriga a beber a própria urina, além de todas pressões psicológicas que ela realiza. Acompanhamos a luta de Paul imobilizado sobre uma cama pela vida, ele tenta a todo custo entrar nos jogos mentais de Annie, mas ela se mostra imprevisível.

O ponto alto das torturas se dá quando Annie usa um machado para amputar o pé de Paul após uma tentativa de fuga. O que torna o comportamento de Annie chocante é o fato dela justifica-lo através do seu fanatismo por Paul, a enfermeira alega durante todas torturas que faz o que faz por amor e porque ele a magoa.
 
“Ele gritava, gritava. A dor! A deusa! A dor! Ah, África!
Ela ficou olhando para ele, para o lençol sangrento e escurecido, com alguma consternação – seu rosto era o rosto de uma mulher que ouviu no rádio que um terremoto matou 10 mil pessoas no Paquistão ou na Turquia. - Você vai ficar bem, Paul – disse ela. Mas sua voz revelava medo súbito. Seus olhos começaram a ir de um canto a outro, como quando pareceu que o fogo do livro incendiado iria sair do controle. Eles se fixaram em algo quase com alívio – Eu vou só tirar o lixo.- Ela pegou o pé de Paul. Os dedos ainda convulsionavam. Ela o levou pelo quarto e, ao chegar à porta, os dedos já não se mexiam. Ele viu uma cicatriz no pé decepado e se lembrou de como a ganhara, pisando em um caco de vidro quando criança”(p.219)
 
Analisando mais de perto Annie Wilkes podemos notar a presença do elemento característico das histórias de King a “Coisa Ruim” em sua derradeira revelação psicótica. Ao mesmo tempo, Annie também se explica pura e simplesmente por seu distúrbio mental, a psicopatia. A realidade nessa história é pouco permeada por aspectos sobrenaturais ou fantásticos, é a pura realidade crua e sem artifícios, é uma história que basicamente gira em torno da loucura.

O desfecho é benéfico para Paul que consegue se livrar de Annie enfrentando-a em uma luta terrível ao fugir. King acrescenta nessa luta discretos traços do sobrenatural na forma que Paul enxerga Annie, como um monstro, um demônio que não morre, mas essa perspectiva está associada à mente traumatizada de Paul Sheldon e não há elementos que nos façam encarar Annie como um monstro no sentido literal.

A estrutura do livro é curta e todo desenrolar dos fatos é direto e implacável. Stephen King cria a atmosfera ideal para nos fazer sentir presos com Paul Sheldon compartilhando suas dores, angústias e desespero. Apesar de cruel, é inevitável, não nos afeiçoarmos também à Annie, pois, mesmo dentro de sua obsessão paranoica King consegue transmitir a possibilidade de nos compadecermos com a loucura de Annie embora, de fato, nos sintamos inclinados a torcer por Paul Sheldon o tempo inteiro. Misery é uma história que vale a pena, apesar de não proporcionar reflexões mais profundas como outras obras de Stephen King, essa narrativa mostra o verdadeiro dom do escritor ao criar enredos de puro terror psicológico.
Larissa Prado
Enviado por Larissa Prado em 01/06/2016
Reeditado em 31/10/2016
Código do texto: T5654195
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