Análise de obra
Laranja Mecânica – Anthony Burgess
 
 “Irmãos, esse negócio de ficar roendo as unhas dos pés sobre qual é a causa da maldade é que me torna um rapaz risonho. Eles não procuram saber qual é a causa da bondade, então por que ir à outra loja? Se os plebeus são bons é porque eles gostam, e eu jamais iria interferir em seus prazeres, e o mesmo vale para a outra loja. E eu frequento a outra loja. E mais: a maldade vem de dentro, do eu, de mim ou de você totalmente sozinhos, e esse eu é criado pelo velho Deus, e é seu grande orgulho. Mas o “não-eu” não pode ter o mau, quer dizer, eles lá do governo e os juízes e as escolas não conseguem permitir o mau porque não conseguem permitir o eu. E não é a nossa história moderna, meus irmãos, a história de alguns bravos eus combatendo essas grandes máquinas? Estou falando sério sobre isso com vocês, irmãos. Mas eu faço o que faço porque gosto”

Uma das obras mais impactantes sobre a alienação pós-industrial do século XX, Laranja Mecânica foi escrito por Anthony Burgess lançado em 1962. O livro foi adaptado para o cinema em 1972 sob a maestria de Stanley Kubrick que soube trazer para a tela do cinema as cenas inquietantes e as críticas contundentes escritas por Burguess. Como acontece poucas vezes tanto a obra literária quanto sua adaptação para o cinema são extraordinárias, ambas valem a pena conhecer e uma não supera ou distorce a outra.

A história em Laranja Mecânica gira em torno do jovem delinquente e astuto Alex DeLarge, indivíduo que é fruto de uma sociedade hipócrita que passa por um período de intenso desemprego em massa, decadência moral e envolta em diferentes enfoques liberais e conservadores acerca de comportamentos violentos. Alex e seu grupo de amigos delinquentes (druguis) costumam sair todas noites para cometer crimes desde depredação de patrimônio público, espancamento de mendigos a estupros. Os desordeiros têm sua própria hierarquia no grupo onde nosso protagonista Alex é o líder. É importante ressaltar a construção da linguagem nadsat na obra, talvez um dos aspectos mais fascinantes da obra no aspecto da construção literária. A linguagem nadsat é utilizada pelo grupo de Alex, a princípio o escritor queria causar um forte estranhamento no leitor, para que ele se sentisse incluso em um mundo completamente diferente, a linguagem sem a presença do glossário causa no leitor um atordoamento em uma história que fala sobre lavagem cerebral a sensação de não compreender o que está escrito nos leva a uma agonia mental crônica, pois, em vários trechos Alex e os companheiros utilizam quase todos períodos em gírias como “bog, brosotar, gúliver e videar”, a construção das gírias foi quase toda retirada do vocabulário russo.  Esse recurso discursivo é usado no livro de maneira mais carregada do que na obra cinematográfica.

Durante a primeira parte do livro as ações de vandalismo e crueldade por parte dos jovens deliquentes nos parecem gratuitas e sem propósito, o que torna mais inquietante o comportamento dos jovens. A violência se resume à diversão, uma saída para o tédio. Aqui se explicaria a definição da ultraviolência ovacionada por Alex quando ele convida os amigos e próprio leitor à “velha e boa ultraviolência”. Nesse contexto, ultraviolência se definiria a partir da ideia de violência pela violência; sem motivos aparentes e levada a um nível exacerbado. A violência com fim em si mesma. Todas atitudes de Alex e seus druguis deveriam nos causar repúdio e indignação, todavia, para nosso assombro moral elas nos divertem. Despertam em nós o gosto pela desgraça alheia e nos leva a pensar: por que sempre diminuímos a velocidade do carro ao passarmos por uma cena de acidente? E se houver sangue isso nos torna mais curiosos e afoitos em ver um ser humano agonizando no asfalto quente. Por mais que a maioria negue, no íntimo todos gostamos de uma boa e velha ultraviolência.

A figura de Alex nos desperta o pior que há em nós, aquilo que mascaramos sob véus de altruísmo, bons costumes, condutas cristãs e morais impecáveis. Diferente de nós, Alex não esconde quem realmente é e não sente vergonha disso. Laranja Mecânica é um chute em tais conservadorismos e na lógica do bom samaritanismo. A segunda parte do livro nos mostra Alex DeLarge finalmente sendo pego pelas autoridades ao ser traído pelos próprios companheiros que aos poucos se rebelaram contra a liderança de Alex. Deixado para trás em uma cena de crime que culminou em assassinato, Alex é pego e não demonstra se preocupar com isso. Ele na verdade ironiza a atuação da polícia. Nessa altura, entramos em contato com o cerne da obra, as questões voltadas ao condicionamento comportamental do protagonista e sua interação com o meio social do qual é fruto.
 
Autoridades e pesquisadores acreditam que podem transformar a natureza delinquente de Alex, podem fazê-lo ser um indivíduo bom e socialmente aceitável e produtivo. O clímax do livro gira em torno do tratamento ao qual Alex é cobaia na prisão para se tornar uma boa pessoa e livrar-se das pulsões violentas. O tratamento Ludovico (a cena clássica de Alex com as pálpebras forçadamente abertas por ganchos) é uma representação do fenômeno psicológico conhecido como condicionamento correspondente. O processo consiste em expor obrigatoriamente o paciente a imagens de violência extrema por longos períodos sob efeito de medicamentos que provocam desconfortos físicos (náuseas, tontura, dores musculares, falta de ar) que levam a experiências de quase morte.

 
“Você pecou, suponho, mas o seu castigo foi além de qualquer proporção. Eles transformaram você em alguma coisa que não é um ser humano. Você está comprometido com atos socialmente aceitáveis, uma maquininha capaz de fazer somente o bem. Música, sexo, literatura e arte, tudo agora dever ser fonte não de prazer, mas de dor.”
 
O paciente através de associação e assimilação por esse trauma sempre que estiver em situações violentas fará a associação com o desconforto causado pelas drogas. O método Ludovico criado por Burgess no universo distópico futurístico de Laranja Mecânica remete ao que Palov dentro do Behavorismo definiu por comportamento respondente. Sem a intenção de me aprofundar nesse aspecto, tal comportamento foi inicialmente testado no simples adestramento de cães a partir de reflexos condicionados e assimilações entre punições (desconfortos) e ações indesejadas dos animais.

“A questão é se uma técnica dessas pode realmente fazer um homem bom. A bondade vem de dentro. A bondade é algo que se escolhe. Quando um homem não pode escolher, ele deixa de ser um homem.”
 
Após sua estadia na prisão e de passar por tal tratamento, Alex está pronto para sua readaptação social, ele é liberado. Está curado de sua má índole, é um novo homem, um indivíduo renascido. Esse estado de reorganização comportamental é pura falácia, Alex foi “adestrado” para ser socialmente aceito, foi condicionado para que fosse reaproveitado. Na sua volta para sociedade se encontra sua verdadeira punição, apesar de curado ele não consegue se ver inserido, se sente alheio e oprimido. É expulso da casa dos pais, não há lugar para sua nova configuração no mundo, diante seu estado de condicionamento mental se sente incapaz e nulo. Ao encontrar dois de seus velhos companheiros de delinquência tornados policiais, Alex se vê indefeso contra as humilhações ressentidas de ambos. Incapaz de reagir às violências sofridas, ele se torna vítima da própria violência.

 
“Você está passando agora para uma região que está além do alcance do poder da oração. Uma coisa terrível, terrível de se pensar. E mesmo assim, sob um certo ponto de vista, ao ser privado de fazer uma escolha ética, você, de certa forma, escolheu o bem. Eu gostaria de crer nisso.”
 
Na terceira parte do livro vemos a derradeira decadência de Alex, quando ele deveria estar sendo reinserido na sociedade. É como se ele pagasse por seus crimes ao estar vivenciado o lado daqueles que foram suas vítimas incapazes de reação. Alex é espancado e humilhado, sua crescente impossibilidade de reagir, de ser violento, de ser quem é, o deixa transtornado e adoentado. Ele sente a raiva, mas não pode se livrar dela por estar condicionado, escravizado por sua própria mente traumatizada. O desfecho do livro traz em si o tom irônico de toda história, Alex é aceito apenas por aquele que ele mais causou danos. O escritor que teve a esposa morta depois da visita de Alex e seus companheiros. A princípio o homem não reconhece Alex e o trata com receptividade e zelo. Alex se sente finalmente acolhido, mas não demonstra qualquer remorso pelo o que fez ao homem que o acolhe. 

Ao reconhecer o delinquente recuperado que foi responsável pela morte de sua mulher o escritor se vinga. Alex é trancado no quarto que foi hospedado e passa a ouvir a música do seu compositor favorito, porém, Beethoven foi transformado em instrumento de tortura durante o tratamento Ludovico, ouvir a sua música preferida leva Alex à loucura, ele se joga da janela do quarto tamanho é seu desconforto e trauma. Alex, porém, não morre na queda, fica hospitalizado e todo quebrado. Ali vemos a reversão do tratamento, pois, Alex é ovacionado pela mídia por aqueles contra o tratamento Ludovico. É um exemplo da cobaia que não deu certo, um fenômeno midiático.

O desfecho do livro, as últimas palavras de Alex, portanto, nos levam a outro tipo de reflexão. Alex traz à tona que seu comportamento se devia ao fato de ser um jovem, um jovem sem perspectiva e entediado, fruto de uma sociedade estagnada e hipócrita, um jovem que lutava contra as pressões às quais todos outros jovens também eram submetidos e cediam. Ele se redime ao dizer que depois de todas suas experiências ele reconhece que está envelhecido demais para continuar na ultraviolência da juventude. E tenta nos mostrar que qualquer mudança pela qual ele deva passar irá partir de sua própria decisão, e portanto decide que irá se casar e constituir uma família, porque é assim que adultos fazem. Afinal de contas, a sociedade conseguiu moldar Alex DeLarge na idade adulta.

 
“É isso que vai ser então, irmãos, quando chego ao fim desta história. Vocês estiveram por toda parte com seu jovem drugui (amigo) Alex, sofrendo com ele, e videaram (viram) alguns dos bratchins(miserável) mais graznis (sujo) que o velho Bog (Deus) já fez, todos em cima do seu velho drugui Alex. E tudo isso era porque eu era jovem. Mas agora, quando termino esta história, irmãos, não sou jovem, não mais, ah não. Alex tipo assim cresceu, ah, sim.
Mas para onde itiarei (irei) agora, Ó, meus irmãos, itarei odinoki (irei sozinho), onde vocês não podem ir. Amanhã tudo será tipo assim flores de perfume doce e a terra voni (fedido) girando e as estrelas e a velha Luna lá em cima e seu velho drugui Alex totalmente odinoki (sozinho), procurando tipo assim uma parceira. E aquela kal (merda) total. Este mundo é mesmo terrível grazni voni (sujo fedido), Ó, meus irmãos. E, portanto, de vosso pequeno drugui, recebam um adeus. E a todos os outros nesta história, profundos shoms (sons) de música labial prrrr. E eles podem muito bem de quando em vez deste que era vosso pequeno Alex. Amém.
E aquela kal (merda) total”.

Além de Laranja Mecânica, Anthony Burgess possui outras obras de grande relevância e que tal como Laranja Mecânica também nos mostram distopias que nos levam a refletir sobre questões sociais e comportamentais. Entre elas recomendo "Sementes Malditas" tão inquietante quanto Laranja Mecânica. Nessa obra, Burgess nos apresenta um retrato apocalíptico da Londres futura, revelando uma sociedade ultra-burocratizada.
Larissa Prado
Enviado por Larissa Prado em 24/05/2016
Reeditado em 09/04/2017
Código do texto: T5645425
Classificação de conteúdo: seguro
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