Feliz ano velho, de Marcelo Rubens Paiva


Em uma tarde de dezembro de 1979, o jovem paulista Marcelo Rubens Paiva, filho de um engenheiro e político de renome nacional e de uma advogada, tem sua vida alterada em virtude de um pulo mal calculado. Após saltar em um lago pouco profundo e bater com a cabeça em uma pedra, vindo a fraturar a medula, a vida do estudante de Engenharia Agrícola da Unicamp, regada de badalações e namoradas, transforma-se em um pesadelo. Esse instante traumático, inconsequentemente, tornaria um jovem de vinte anos o vencedor do Prêmio Jabuti de Literatura em 1983 com o romance autobiográfico Feliz ano velho, publicado em 1982.

O mergulho para a tetraplegia fez emergir o escritor Marcelo Rubens Paiva que, em seu primeiro livro, narra a história do seu acidente, de sua vida de estudante, de seus dramas familiares e de suas visões político-sociais e culturais.

O acidente foi um verdadeiro “soco no estômago” de Paiva, deixando-o preso a uma cadeira de rodas pelo resto da vida. Tal qual essa energia que lhe foi imposta o destino, o autor reveste sua narrativa com uma linguagem também enérgica, dando igualmente um “soco no estômago” do leitor acostumado a enredos amenos. Através de um discurso informal, próximo da coloquialidade e do universo jovem, Paiva recupera lembranças da infância e adolescência, de momentos singulares de sua vida de acadêmico e de filho que teve o pai morto pelas mãos do Regime Militar brasileiro. Simultaneamente, ele vai registrando, como se escrevesse em um diário, os instantes que passou no hospital, até sua saída para a casa. Pessoas do convívio familiar, amigos, agentes de saúde e outras personalidades da história ganham lugar em seu enredo.

Com simplicidade e sem medo de se expor, o narrador constrói imagens poéticas em torno do amor pela mãe e irmãs, dos amigos seletos e colegas de infância e faculdade, das aventuras típicas de um jovem hedonista, das fantasias sexuais. Assim, apesar do tema trágico, a narrativa agrada pelo humor, pela ternura e pelo erotismo. Mesmo diante de um estado de desânimo, que gera, inclusive, pensamento suicida, Paiva consegue expressar sua irreverência e visão crítica do mundo, sobretudo da sociedade política brasileira. Dessa forma, suas palavras ganham pluralismo, representando o ideal do jovem do final dos anos 1970 e início dos anos 1980, o qual, tomando como referência as ousadias da Contracultura, estava em profunda efervescência por um país em busca de sua redemocratização.

Publicado quando o autor tinha 23 anos, Feliz ano velho traz uma escrita visceral, que procura não só relatar um acidente, mas também trazer uma superação. É uma história de fé na vida, independente de religião. Apesar de tudo, o que ainda nos resta, ante as adversidades diárias, é continuar vivendo. Marcelo Rubens Paiva constrói a identidade de dois homens: de um jovem cheio de sonhos, solto pelos ares do desatino; e de um homem cheio de realizações, preso no solo do tino.

Feliz ano velho é um livro de memórias, cujo protagonista é o próprio autor Marcelo Rubens Paiva. Os nomes próprios que aparecem, alguns por apelidos, os topônimos e as referências históricas fazem de sua escrita um verdadeiro relato autobiográfico. Pelo teor confessional, o livro também se aproxima do diário, sem possuir, contudo, as datações típicas. Divido em sete capítulos, a obra é, acima de tudo, um belo romance verossímil, recheado de amores, amizades, frustrações, desilusões, medos, incertezas, prazeres e dores, superações, aventuras.

No primeiro capítulo, “Biiiiiin”, que narra o acidente, encontra-se a vida jovial em sua sinergia, associada à transgressão de preceitos adultos. São personagens ligados ao universo das drogas, do álcool, das aventuras, muitas vezes inconsequentes.

No segundo capítulo, “Do lado de cá dos trilhos”, Paiva se situa na sociedade brasileira, um jovem pertencente a classe média alta, estudante universitário, cuja infância foi marcada por uma realidade econômica confortável. 

No terceiro capítulo, “UTI – Unidade de Terapia Intensiva – a realidade, ocasionada por seu ato negligente. Estando na UTI, ele recupera suas aventuras amorosas, lembranças da infância, entrecortadas pela realidade dos médicos e enfermeiros. O acalento está na ternura dos amigos e da família sempre presente no seu leito. Três personagens femininas se destacam nesse cenário: a mãe, figura materna que transmite força, a avó, sempre prestativa, e Nana, que incorpora um misto de amiga, irmã e amante.

No quarto capítulo, “Hospital Paraíso, São Paulo”, a lembrança do pai, preso e assassinato, é o tom mais significativo dessa parte. A monotonia do hospital, o espírito de solidariedade dos amigos, lembrança de namorinhos. Há um visível posicionamento político esquerdista do protagonista, filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT). 

No quinto capítulo, “Apartamento”, a continuação do tratamento em casa. Já andando na cadeira de rodas, faz passeios pela cidade de São Paulo.

No sexto capítulo, “Uma paulista chamada avenida”, Paiva descreve a sua paixão por essa avenida, onde a mãe trabalha. São narrados mais passeios, como a ida ao estádio de futebol e ao cinema. Há uma reflexão entorno do deficiente. A recordação erótica de Marina e a redescoberta da sexualidade com Bianca. 

O sétimo e último capítulo, “Início de dezembro – 1980”, há um Paiva mais consciente de sua situação que completaria um ano de acidente.

Como lembra as palavras de John Donne, “nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra”. Isso significa que nenhum escritor cria sua obra somente de um mergulho em si mesmo. É preciso vir à tona para respirar o mundo. As experiências humanas são insumos para a produção literária, que trazem consigo um sujeito condicionado a seu lugar social. Em uma autobiografia, ou escrita de si, ou escrita do eu, o lugar social do autor carrega sua escrita de seus valores de classe. 

Quando um autor se propõe a contar sua própria história, ele narra também a história dos seus. A voz de um reverbera a voz de uma geração. É claro que essa voz procura em si o hálito de seu tom. O mesmo evento pode ser descrito de várias formas de acordo com os olhares. Afinal, como assevera o teólogo Leonardo Boff: “todo ponto de vista é a vista de um ponto. Para entender como alguém lê, é necessário saber como são seus olhos e qual é a sua visão do mundo”. 

Para Philippe Lejeune, em O pacto autobiográfico, a autobiografia é a “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade” (LEJEUNE, 2008, p. 14).

Em Feliz ano velho, Marcelo Rubens Paiva traz não apenas a sua história individual, mas também a história de um país, que passava pelos últimos anos de um Regime Totalitário. A personalidade do autor é desnudada em sua escrita, revelando também a personalidade de membros de sua família e de seus amigos seletos. A cara política brasileira também é desmascarada com referências a personalidades públicas. De forma ousada, o autor elenca lembranças e as emparelha com sua vida presente para construir sua narrativa. 

 

O acidente foi fado, evento não previsto no roteiro de vida traçado por Paiva. Foi, porém, absorvido pelo espírito aguerrido do autor que, recomendado pela terapeuta a exercitar os movimentos das mãos, lança-se à maquina de escrever, inaugurando a sua carreira de escritor.

Dessa maneira, uma das pessoas mais prestativas na vida de Paiva foi a Terapeuta Ocupacional. Uma linda loira de olhos azuis cujo nome não é revelado no livro. Graças a ela, com seus “santos” elásticos, Paiva consegue escrever e datilografar. Eis o instante em que nascerá o escritor. 

Logo no início da resenha que escreveu sobre o livro de João Carlos Pecci, Minha profissão é andar, Paiva revela o seu desejo de também historiar sua vida: “Nossos caminhos se cruzaram, assim como a ideia de escrever um livro também se cruzou. Eu sou Marcelo e ele, João”. (p. 240). 

A literatura, então, se tornou o veículo do autor para se locomover. Não podendo sair de seu estado quedo, suas palavras ganham vida nas páginas escritas e alçam voos nas retinas dos numerosos leitores que fizeram de Feliz ano velho um dos maiores best-sellers do Brasil. Publicado em 1982, até hoje, a sua leitura é recorrente e sempre atual, por tratar-se de um relato dramático, sem piegas, de superação. 

É fato que, na produção de qualquer obra de arte, o artista não só se torna o sujeito da criação, mas também se torna criatura dela. Muitos são os exemplos em que o autor se transforma a partir de seu texto, de forma que já não há mais autor e obra, mas uma só criatura-criadora. Na história da arte, podem ser citados “Mona Lisa” e Leonardo da Vinci; “Davi” e Michelangelo; “A quinta sinfonia” e Beethoven. Na literatura, Romeu e Julieta e Shakespeare; A divina comédia e Dante; Dom Casmurro e Machado de Assis, Grande sertão: veredas e Guimarães Rosa; bem com também não há como distinguir Feliz ano velho e Marcelo Rubens Paiva.
           
O trauma foi a motivação para o surgimento de um escritor. Após um pulo mal calculado em um lago, o jovem Marcelo Rubens Paiva, de vinte e poucos anos, tem sua vida interrompida. As aventuras de um “playboy” paulistano, regradas a sexo, a música e a deleites noturnos cedem espaço para a uma ventura nada fácil: a cadeira de rodas.

Sem dúvida, perder os movimentos de pernas e braços é uma dor mais que física. A própria motivação para viver se abala. Um corpo que agora depende dos outros para se sustentar. A liberdade de ir e vir limitada e praticamente atada a familiares e amigos. Porém, tal tragicidade revelou ao mundo a escrita despudorada e intensa de Marcelo Rubens Paiva.

Feliz ano velho é o relato do acidente, a descrição de um tetraplégico que aciona suas memórias para encontrar razões para continuar a vida. Marcadamente psicológico, a narrativa, com seu teor autobiográfico, é um testemunho subjetivo de uma sociedade em transição política. Logo, a voz do autor se mescla aos anseios de muitos que se privaram durante o Regime Militar no Brasil. 

Para ler uma análise completa e resolver questões sobre a obra, adquira o livro: A palavra-vida de um corpo quedo.