O Cemitério e Revival
“Eu não quero ser enterrado em um cemitério de animais
Eu não quero viver minha vida novamente”
(Pet Sematary - Ramones)
Eu não quero viver minha vida novamente”
(Pet Sematary - Ramones)
Na terceira análise de obras do escritor Stephen King, trago duas histórias que têm como fio condutor questões sombrias acerca da vida e da morte, mortalidade e imortalidade, bem como, a presença de elementos ligados aos mortos voltando à vida (zumbis). Aparentemente as obras não possuem ligações evidentes, mas à medida que vamos acompanhando a descida dos personagens no abismo da loucura causada pela incapacidade de lidar com perdas notamos diversos traços comuns entre as narrativas. O Cemitério (1983) ganhou adaptação nos cinemas sob a direção de Mary Lambert no ano de 1989 intitulado “O Cemitério Maldito” assim como a obra literária é um filme assustador. Revival (2014) foi inspirado em outro grande clássico do horror “Frankenstein - ou Prometeu Moderno” de Mary Shelley(1797-1851). As obras trabalham com temáticas que abordam o desconhecido, com o que há após a morte e mais do que isso com o sentimento desolador da perda diante a morte que todas pessoas precisam lidar em algum momento da vida, talvez por isso, sejam as duas obras do escritor que mais tenham mexido de uma maneira peculiar com aqueles que se aventuraram em lê-las.
Nas duas obras acompanhamos a trajetória de personagens que sofrem perdas trágicas, tais perdas acabam por transformar a forma com que lidam com suas crenças religiosas e valores morais. Em O Cemitério acompanhamos a vida de um jovem médico, Louis Creed, que se muda com a família para uma nova cidade, o clima do início do livro é de total animação esperançosa em um futuro melhor para ele, a esposa Rachel, a filha mais velha Ellie e seu filho bebê Gage. Ao se mudarem conhecem um personagem muito importante, o vizinho Jud, um velho morador cheio de superstições e conhecimento sobre um passado sombrio do lugar. Esse personagem introduzirá o aspecto sobrenatural na história, irá guiar Louis Creed de maneira involuntária ao abismo da loucura assim que o jovem médico recebe o primeiro duro golpe, a morte do filho Gage por atropelamento de um caminhão. Antes desse fato decisivo há toda uma preparação de Louis para a morte do filho, como se fosse algo que estivesse pairando sobre seu dia-a-dia, como se fosse um presságio, pois, Louis atende no pronto-socorro da universidade local e lá acaba presenciando a morte de um estudante atlético, Pascow. A imagem do estudante passa a visita-lo em pesadelos, a falar sobre morte e a fazê-lo ter acessos de sonambulismo. Após esse fato, o gato da sua filha mais velha, Church morre atropelado enquanto ela está viajando com a mãe, Jud fala sobre um Cemitério de animais que crianças no passado criaram para homenagearem seus bichos mortos, o próprio vizinho Jud foi uma dessas crianças. Louis conhece o local com a família, não há nada de excepcional lá além do fato da placa estar escrita com uma grafia infantil errônea.
Porém, existe uma região além Cemitério dos Animais que esconde a verdade por trás da “magia” do lugar. Aqui Stephen King introduz seu universo paralelo de horror, pois, no terreno além do Cemitério há uma antiga região indígena que segundo lendas tem o poder de trazer de volta à vida quem é enterrado lá. É durante as longas conversas entre Louis e seu velho vizinho Jud que conhecemos essas histórias assombrosas superficialmente, tudo é apenas uma preparação para o que Louis enfrentará ao perder Gage no acidente de caminhão. Toda narrativa conduz a mente do personagem, até então cético, para esse universo do sobrenatural e do absurdo. Louis promete a si mesmo que jamais irá visitar o lugar e que jamais faria algo do tipo: enterrar algum ente querido para que voltasse à vida ali além do Cemitério dos Animais. Ele não se vê no futuro em nenhum momento sendo capaz de algo do tipo, porém, notamos que é exatamente isso que ele fará. A angústia da história está no fato de Louis ceder lentamente aos lapsos de loucura pela morte do filho, há um embate feroz dentro dele cada vez que ele sonha e se projeta até o lugar, após a morte do filho. A incapacidade humana de lidar com a morte é o que conecta essas duas histórias.
De fato, Louis acaba desenterrando o corpo do filho desmembrado e o enterrando no lugar maldito que traz mortos de volta à vida. Toda sequência do ato de desenterrar a criança e transportá-la até o lugar maldito é cheia de descrições tenebrosas, macabras e horripilantes. Quando o pai precisa “juntar” as partes que estão desconectadas do corpo do filho no lençol enche o leitor de repugnância e nos faz questionar se no lugar do protagonista faríamos o mesmo? O livro todo nos leva a questionar várias questões sobre nossas próprias escolhas morais e sobre o que vem a ser normal e anormal nas atitudes de Louis. Ele está sendo guiado apenas pela dor lancinante e pela culpa de ter deixado o filho morrer numa estrada esmagado por uma roda de caminhão? Ou há uma influência sobrenatural sobre seus atos? As duas possibilidades se mesclam, Louis está enlouquecido pela dor e pela culpa e se tornando suscetível ao poder do lugar. Seu vizinho Jud alertou-o o tempo inteiro sobre o “poder” do lugar maldito, um poder ancestral e inexplicável.
Como traço característico de quase todos personagens de King, que em algum momento perdem o fio da sanidade, Louis também se torna suscetível ao poder do sobrenatural através de uma mente fragilizada, exposta a traumas e medos. Gage volta à vida depois de uma sequência de cenas horripilantes, mas não é o Gage normal, quando alguém volta à vida é como se voltasse sem alma, um zumbi, um ser cheio de astúcia e crueldade. Nesse aspecto reside a “coisa ruim” da obra de King, ela vem através dos mortos que ganham a vida novamente. Gage se transforma em um dos personagens mais aterrorizantes de King, um bebê assassino e insano. Ele assassina o velho vizinho Jud a facadas enquanto gargalha como um bebê feliz, e quando a mãe retorna para casa Gage a ataca também. É uma coisa de volta à vida. Mais do que o retorno dos mortos enlouquecidos o que confere o aspecto tenebroso à história é a descida que Louis precisa fazer até o lugar maldito e as coisas que vê se moverem por lá. É uma obra de horror psicológico e sobrenatural digna de garantir arrepios.
Em Revival, nós acompanhamos o relato de um homem chamado Jamie Morton desde sua infância religiosa e feliz sob a influência do jovem e divertido pastor Charles Jacobs até sua vida adulta de músico ocasional e dependente químico. Os dois personagens principais da obra são Jamie, o narrador e Charles Jacobs. Em Revival a questão da perda recaí sobre Jamie através de aspectos existenciais, o garoto desperdiça sua vida em drogas e em uma vida errante sem quaisquer conquistas significativas ou relações sólidas, é uma perda de si mesmo. Na contramão está Charles Jacobs, o elemento que vive reaparecendo na vida de Jamie desde a infância, Jacobs sofre a perda material do filho e da adorável esposa jovem em um horrível acidente de carro ainda na sua juventude, isso o faz questionar todos seus preceitos religiosos enquanto pastor, Jacobs passa a duvidar do poder divino e se concentra ainda mais na sua paixão pelo uso de Eletricidade dando a ela um aspecto de deidade. Ele transfere suas crenças religiosas para a Física, se torna um viciado em experiências bizarras através do uso de choques. Jacobs vai sendo mostrado para nós como um homem que adentrou o abismo da loucura após a perda da família e a vida do narrador Jamie está sempre interligada à dele, é como se eles sempre estivessem dispostos a se encontrar mesmo depois de passarem anos distantes. A cada momento a narrativa nos promete reviravoltas que não acontecem o que agrega um caráter apreensivo na leitura. Esperamos revelações de Jacobs que não chegam, ele vai se delineando louco, mas não conseguimos mensurar onde sua loucura chegará, nossas impressões são as mesmas de Jamie e vamos descobrindo a verdade sobre Jacobs junto com o narrador.
A incapacidade de lidar com perdas despertou em Jacobs uma síndrome de Deus, ele passou a tentar buscar o elo de ligação entre a vida e a morte através da eletricidade, empreendeu o resto de sua vida a fazer pessoas voltarem a andar, se recuperarem de doenças terminais entre outras graves moléstias através do seu poder terapêutico com a eletricidade. De pastor a um showman, Jacobs se tornou uma atração mundial e curou Jamie do uso das drogas dando a ele uma vida digna e limpa. Jamie se sente grato, mas sua relação com Jacobs é permeada por desconfianças, ele sempre nota um traço insano em Charles Jacobs, algo que nunca está certo em seus trejeitos e ideias de grandiosidade. Vemos a influência clara do romance clássico de Mary Shelley à medida que Jacobs passa a falar sobre seu projeto de vida que seria trazer mortos de volta à vida sem preocupar-se com as implicações reais que isso acarretaria como acontece com a mente pretensiosa e inventiva de Victor Frankenstein e sua obsessão em desafiar o poder da morte em nome ciência, há a deificação da ciência.
As últimas páginas de Revival são um verdadeiro show de horrores, Jacobs alcance o ápice de sua loucura e vemos o que era seu projeto de uma vida inteira. Em uma noite de tempestade, isolado e com Jamie como ajudante, ele realiza o procedimento de trazer uma antiga conhecida de ambos, já morta, à vida. A mulher retorna à vida, mas não é ela mesma, assim como acontece com aqueles que são sepultados no lugar maldito de O Cemitério, aqui a mulher volta em forma de uma coisa medonha e abre um portal para o mundo dos mortos onde criaturas e imagens tenebrosas se sobrepõe.
“Não me lembro de abrir a gaveta da cômoda. Só sei que, de um instante para outro, o revólver estava em minha mão. Acho que, se fosse uma pistola automática com o pino de segurança travado, eu teria ficado ali, apertando o gatilho inerte, até que a coisa se erguesse, se arrastasse pelo quarto e me agarrasse. A garra poderia ter me puxado para aquela boca enorme e me levado para o outro mundo, onde eu sofreria uma punição indescritível por ter tido a ousadia de dizer uma palavra: não.
Mas não era uma pistola automática. Era um revólver. Atirei cinco vezes, e quatro das balas atingiram a coisa que tentava se erguer do leito de morte de Mary Fay. Tenho uma razão passa saber exatamente quantos tiros dei. Ouvi o estampido, vi os flashes dos disparos na penumbra, senti os coices da arma em minha mão, mas tudo isso parecia acontecer com outra pessoa. A coisa se contorceu e caiu para trás. Os rostos dissolvidos gritaram com as bocas unidas. Eu me lembro de pensar: “Não dá para matar a Mãe com balas, Jamie. Não dá”.
Mas ela já não se mexia. A obscenidade que tinha saído da boca da coisa estava tombada e se arrastava sobre o travesseiro, exaurida”. (p.354)
Mas não era uma pistola automática. Era um revólver. Atirei cinco vezes, e quatro das balas atingiram a coisa que tentava se erguer do leito de morte de Mary Fay. Tenho uma razão passa saber exatamente quantos tiros dei. Ouvi o estampido, vi os flashes dos disparos na penumbra, senti os coices da arma em minha mão, mas tudo isso parecia acontecer com outra pessoa. A coisa se contorceu e caiu para trás. Os rostos dissolvidos gritaram com as bocas unidas. Eu me lembro de pensar: “Não dá para matar a Mãe com balas, Jamie. Não dá”.
Mas ela já não se mexia. A obscenidade que tinha saído da boca da coisa estava tombada e se arrastava sobre o travesseiro, exaurida”. (p.354)
O embate final entre Jaime e a coisa que Jacobs evocou com seu projeto de vida através da eletricidade nos remete ao trágico desfecho de Louis Creed em O Cemitério ao tentar trazer o filho morto de volta, pois, em ambas as histórias não temos um final que nos alivie, pelo contrário, ele deixa aberto para uma série de impressões inquietantes sobre a relação frágil que o ser humano possui com a morte em todos seus aspectos naturais e sobrenaturais. Jaime termina o livro em uma consulta com o psiquiatra e nesse ponto Stephen King deixa claro que o personagem não saiu incólume das experiências bizarras que teve ao lado de Jacobs que junto com seu sonho de grandeza também morreu.
São duas histórias assombrosas que merecem destaque entre as mais perturbadoras criadas por King por lidarem não apenas com a morte, mas também com o impacto de grandes perdas, ‘a transvaloração de valores’, os limites entre a loucura e a sanidade, e a presença da realidade paralela dos mortos que voltam à vida. A forma como King trabalha a questão dos zumbis em ambas narrativas é reflexiva, foge à clássica concepção dos zumbis que retornam à vida débeis e sedentos por carne humana. Tudo o que envolve o aspecto dos mortos-vivos nestes livros é o que lhes garante o lugar dos mais tenebrosos na carreira do autor.