Delírio, poesia e morte
“Aquele que nunca muda de opinião é como a água parada, e cria répteis da mente”. Esta citação de William Blake serve para diferentes facetas da existência humana – e em particular para a Arte; um artista jamais deve deixar seu processo criativo estagnar. Estando sempre disposto a arriscar-se em diversos outros estilos, temas, inspirações e modelos, todo aquele que se aventura no mundo das artes tem que preparar-se para ser versátil, incorporando o espírito do “Chameleon-Poet” idealizado por Keats do melhor modo possível.
Percorrendo esta estrada pavimentada por tantos outros grandes que me antecederam (e trilhada na companhia de muitos tanto melhores quanto piores do que eu) há mais de uma década, meu processo criativo passou por várias metamorfoses – e se me for dado viver até a velhice (por mais que esta perspectiva cause-me muito desagrado) certo estou de que passará por muitas mais. Incontáveis livros entraram e saíram de minha biblioteca, autores foram imortalizados em meu Panteão mental enquanto outros foram relegados à damnatio memoriæ, e alternei entre a poesia e a prosa com volubilidade e divergentes graus de sucesso – mas se há algo que nunca mudou e jamais mudará é minha admiração imorredoura por Álvares de Azevedo.
Primeiro poeta que li, e que abriu-me as portas para muitos outros, sua obra despertou um “não sei quê” em meu peito, pressagiando o dia em que as Musas desceriam do Parnaso e, presenteando-me com o mesmo cajado de louros de Hesíodo, me diriam: “Escreva!”. Seus poemas da primeira parte da “Lira dos Vinte Anos” embalaram os momentos mais dourados de minha meninice, enquanto os da segunda parte contemplaram sua gradual dilapidação – e hoje, beirando os 30 anos, rio de tudo aquilo que hei amado com sarcasmos tão venenosos quanto Azevedo exprimia aos 20.
Julgo “Noite na Taverna” uma das obras mais subestimadas de nossa literatura, com os contos que a compõem nada devendo à pena de um Poe, e até mesmo “Macário”, com seu enredo fragmentário, estrutura desigual e final abrupto, demonstra momentos do mais puro gênio. De fato o único grande problema das obras de Azevedo é sua desigualdade estilística – o que talvez fosse-lhe dado corrigir e aprimorar caso tivesse vivido por mais tempo e amadurecido seu processo criativo; mas do jeito que nos foram legados, os escritos de Azevedo são um memorial à inspiração arrebatada da juventude, que poderia vir a esfriar em sua velhice. Muito provavelmente, como Goethe, se alcançasse seus 80 anos viria a nos deixar um “Fausto” depois de escrever seu “Werther” aos 24, mas “Deus leva na juventude àqueles a quem ama”, e sua juvenilia está imortalizada ao lado dos sepulcros de Keats, Shelley, Chatterton e Lucretia Davidson – e de nossos outros não menos importantes conterrâneos Casimiro de Abreu, Junqueira Freire, Fagundes Varela e Castro Alves.
Entretanto, menções a Azevedo e sua obra na cultura popular brasileira são extremamente escassas! Contam-se nos dedos de uma única mão as adaptações de seus trabalhos em diferentes formas de mídia, e livros escritos a seu respeito (seja como personagem ficcionalizado ou discorrendo sobre sua obra) são igualmente poucos. Sua vida pôde ter sido breve, e não tão repleta de coloridas aventuras, mas ainda assim acredito que deva ser cantada, de modo mais ou menos fiel à realidade, por todos os seus entusiastas; e antes que acusem-me de idealista, alerto-lhes que não sou o único a pensar desta forma.
Uma das vantagens desta minha carreira de escritor foi ter sido verdadeiramente abençoado com a amizade de Luciana Fátima, com quem pude corresponder-me por vários anos até que maiores obrigações vieram a separar-nos. Creio-a uma das maiores entusiastas da obra de Azevedo que já pisaram em solo pátrio, demonstrado por seu ensaio “O Poeta que Não Conheceu o Amor Foi Noivo da Morte” e por sua biografia romanceada de Azevedo, “Delírio, Poesia e Morte” – fui bastante afortunado de ter sido presenteado com um exemplar, mas não tive a chance de ler o primeiro livro (ainda). Estou certo porém de que é tão bom quanto este, se levarmos em conta a meticulosa pesquisa empregada por Fátima em se tratando da vida e obra de minha maior inspiração.
Valendo-se da primeira pessoa para dar voz ao próprio Azevedo, a autora consegue ser muito convincente passando-se por ele, e narrando os episódios mais importantes de sua curtíssima vida de um modo deveras verossímil dá realmente a crer que seguramos em mãos algum escrito há muito perdido do poeta. O projeto gráfico do livro é igualmente excelente, repleto de ilustrações, fotografias e caixas de texto com citações de poemas de Azevedo, e fornece uma agradável leitura tanto para seus apreciadores como para quem ainda não o conhece.
Mantenho meu exemplar guardado com todo o carinho, autografado como uma cortesia adicional, e haverei de valorizá-lo como o mais encantador presente que já ganhei. Ainda acompanho sempre que posso o trabalho de Fátima, e pretendo pôr as mãos em seu livro mais recente sobre Azevedo, “Ad Infinitum”, o mais rápido que me for permitido. Como uma lembrança de minha própria juvenilia que ainda permanece intocada em sua glória em meio a tantos outros monumentos corroídos pela ferrugem da desilusão, a poesia de Álvares de Azevedo sempre estará lá para lembrar-me de meus inícios humildes – seja no próprio estilo de meus trabalhos, seja nas incontáveis epígrafes que utilizei para eles. (Gostaria muito de contabilizá-las aqui, mas seria uma hercúlea tarefa à qual gostaria de poupar minhas forças.)
Numa nota final à amiga Luciana – ainda estou no aguardo de sua biografia do Conde de Lautréamont… e queira perdoar-me por, em troca deste livro tão bem-feito, dar-lhe aquela minha horrenda noveleta!
(São Carlos, 21 de agosto de 2021)