Cidade oculta

Às vezes penso comigo mesmo (um tanto quanto jocosamente) que, se São Paulo fosse uma pessoa, seria Arrigo Barnabé; mesmo não tendo nascido na cidade – e tampouco no Estado; Barnabé é paranaense – este interessantíssimo cantor consegue incorporar o espírito frenético desta metrópole em todos os seus trabalhos. Até em sua aparência, com seus cabelos longos e desvairados e a voz roufenha de locutor de rádio, dá ele um rosto e atributos humanos ao lugar – o que acho muito bom, pois gosto bastante tanto da cidade quanto do homem.

Estive em São Paulo duas vezes, e mesmo que meus perímetros fossem limitados (como poderia eu, um mero Kleinstadt-boy, explorar a cidade inteira ainda que fosse-me dado todo o tempo do mundo?) fui suficientemente privilegiado de conhecer suas duas faces: a típica metrópole cinzenta repleta de poluição e gente neurótica, e um lugar que esconde belos e delicados momentos de diáfana beleza àquele que estiver disposto a procurá-los. Traço um paralelismo entre estas faces de São Paulo com os quatro discos lançados por Barnabé – a primeira é representada por “Clara Crocodilo” (1980) e “Tubarões Voadores” (1984).

Ambos são extremamente cacofônicos, e em suas letras fazem constantes referências à paisagem urbana decadente de uma versão quase que gibi de São Paulo; o primeiro em particular é permeado pela insólita figura da epônima Clara Crocodilo, sempre à espreita… Talvez por isso os paulistanos tenham tanta pressa…?

A segunda face de São Paulo é representada pelos dois álbuns remanescentes que são “Suspeito” (1987) e “Façanhas” (1992) – muito mais suaves e acessíveis em termos de sonoridade, com letras de cunho romântico e de uma sensualidade ímpar. Há quem não goste muito destes dois últimos, julgando-os quase que apócrifos na carreira de Barnabé, mas sem a ordem não existe o caos, e vice-versa: saber manipular noções opostas é algo muito importante para um artista.

Sempre batendo à porta do underground, fiquei deveras surpreso e contente ao descobrir que Barnabé estrelou, roteirizou e compôs a trilha sonora de um filme – o desconhecido “Cidade Oculta”, de 1986, dirigido por Chico Botelho. Estrangeiro em minha própria terra, não consigo me entusiasmar por grande parte das produções culturais de meu país, mas este filme, ainda que não acrescente nada de novo ao gênero ao qual pertence – ação/policial –, não deixa de ser cativante e oferecer um nostálgico panorama de São Paulo nos anos 80.

Barnabé interpreta o traficante Anjo, que é solto da cadeia após anos preso. Reencontrando-se com seu antigo comparsa Japa (Celso Saiki), é forçado a lutar contra fantasmas do passado na forma do mesmo policial corrupto que o prendeu (Nelson “Ratão” Fraga, interpretado por Cláudio Mamberti) enquanto equilibra um romance com a cantora e dançarina Shirley Sombra (Carla Camurati). Uma história simples e sem muito espaço para inovações, mas é o modo que é contada que importa.

A mesma estética de gibi replicada por Barnabé em seus dois primeiros álbuns é utilizada no filme – a cinematografia ora lúrida, ora vibrante representa os quadrinhos de um gibi com eficácia, e acredito eu que nenhum outro filme brasileiro antes ou depois repetiu esta técnica; e sob esta ótica, talvez tenha sido um predecessor não-celebrado da duologia “Batman” (1989–92) de Tim Burton, “Dick Tracy” (1990) e “O Corvo” (1994). O grande benefício de “Cidade Oculta”, porém, é não precisar de sets, já que São Paulo, com seus blocos feiosos de concreto recobertos de pichações, assemelha-se ao “Inferno irrompendo pelo asfalto e germinando”.

A melhor parte do filme todo, porém, é a trilha sonora; composta majoritariamente por Barnabé, também conta com participações de Ney Matogrosso, Tetê Espíndola e da Patife Band (liderada pelo irmão caçula de Arrigo, Paulo). Quase que unificando as duas metades de sua obra, o álbum alterna entre canções de ritmo frenético – como “Ronda II” e o cover do “Poema em Linha Reta” de Fernando Pessoa – e outras repletas de poética suavidade – como a faixa-título e a propositalmente cafona balada synthpop “Pô, Amar É Importante”.

A olhos atuais pode parecer que “Cidade Oculta” é um filme simplista – principalmente se comparado aos lançamentos repletos de efeitos especiais que abundam hoje nos cinemas; mas como uma representação visual da excêntrica mente de um dos compositores mais inventivos e subestimados da nação e um veículo para a sua música, vale a pena ser visto e apreciado. Neste passeio nostálgico por São Paulo, Clara Crocodilo é quem nos guia – feliz orgasmo, ouvinte!

(São Carlos, 16 de agosto de 2021)

Galaktion Eshmakishvili
Enviado por Galaktion Eshmakishvili em 14/03/2016
Reeditado em 19/08/2021
Código do texto: T5573385
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