Amor louco
Quando as típicas aflições da existência alfinetam-me o coração, mas a Musa não revela-se a mim e não permite que eu as verta em poemas, gosto de sair perambulando pelas ruas da cidade.
Quase que um pálido imitador do “Man of the Crowd” de Poe, singro ruas sem fim e sem percurso fixo, observando avidamente os arredores; vejo casas, prédios (estejam ao longe com suas luzes acesas misturando-se às estrelas ou não), animais, postes e outros transeuntes, e gosto de imaginar como vivem, inventando-lhes interessantes biografias. Que dramas particulares estariam se desenrolando na vida deste ou daquele indivíduo? Que cenas se ocultam atrás daquela janela a metros de distância? É fascinante parar para refletir que divido meu espaço com tantas pessoas, mesmo que vivamos nossas respectivas vidas em separado.
De todos os “hobby-horses” que vim a nutrir, é este o mais recente porém; um divertimento como este não passaria pelo meu pensamento e tudo parecia-me sempre o mesmo, até que meu mestre T… abriu-me os olhos durante o período em que hospedei-me em sua casa, e com sua sabedoria que causaria inveja ao mais ascético monge, ensinou-me que “nada é trivial” na forma de vários passatempos.
Naqueles idílicos tempos em que tinha acesso irrestrito aos livros e discos de T…, dentre os do segundo rol um em particular chamou-me a atenção, e até hoje carrego-o num lugar especial em meu coração, sempre ouvindo-o antes de sair em minhas caminhadas: “Amor Louco”, da banda Fellini.
T… dizia-me que aquele álbum era “o equivalente auditivo de caminhar pela cidade num fim de tarde, com o Sol se pondo e as luzes artificiais acendendo devagar uma a uma – é aí que deve deixar sua imaginação voar, e percorrer seu itinerário com os olhos da Fantasia. Cada pessoa passa a assemelhar-se a um pequeno universo incluído no Todo, e nos é dado comungar da Grande Obra ainda que de modo indireto e imperfeito”.
Que mais poderia eu acrescentar às palavras de meu caríssimo mentor sem extirpá-las de sua hermética beleza?
“Amor Louco” é um álbum que, sem abandonar sua suavidade, mantém um ritmo sempre pulsante e animado – como de fato é a vida metropolitana. Sugiro ao leitor para que coloque-o e, observando pela janela de sua casa, constate por si próprio como forma a trilha sonora de um dia a dia na cidade; as faixas mais animadas, como “Chico Buarque Song”, a titular “Amor Louco” e “Love Till the Morning” constituem o dia, enquanto as mais lentas, como a encantadora “Grandes Ilusões” e “Samba das Luzes”, constituem a noite.
Entretanto, as duas faixas mais emblemáticas e que provam meu ponto (e o de T…) por si só são “Cidade-Irmã” e “Città più bella”, que descrevem rica e convidativamente o meio urbano, cantando toda a vida que o compõe. “As ruas são os vasos sanguíneos da cidade, e a vida que corre por elas seu sangue” – assim dizia uma frase que ouvi há muito tempo, não me recordo de onde. À época, julguei-a um tanto quanto desprovida de elegância, mas atualmente concedo que nem ela é trivial – até os clichês merecem nosso respeito ocasionalmente.
E, assim, sigo a passear com este maravilhoso álbum dançando em minha cabeça, estudando as mazelas desta cidade perdida onde tudo fácil vem e fácil vai, desempenhando meu papel no fragmentado drama do Todo que me cerca.
(São Carlos, 19 de agosto de 2021)