DUAS GRINALDAS DE SONETOS DO AEDO WAGNER RIBEIRO

“A LEITURA DAS OBRAS literárias nos obriga a um exercício de fidelidade e de respeito na liberdade da interpretação. (...) As obras literárias nos convidam à liberdade da interpretação, pois propõem um discurso com muitos planos de leitura e nos colocam diante das ambiguidades e da linguagem e da vida.” (Humberto Eco)

Não tenho que preparar uma aula sobre a “coroa ou grinalda” de sonetos, mas disponho de dois exemplares do poeta Wagner Ribeiro, Ave, Caesar... (2013), e Uma visão do aedo (2015). Isto quer dizer que tenho duas obras dignas de estudo ou, pelo menos, como agora, de uma página de comentário. Preocupada com o que dizer sobre a obra do poeta Wagner Ribeiro, andei buscando alguma fundamentação e encontrei um conceito do que é uma coroa de sonetos:

A elaborada “coroa de sonetos” consta de 15 sonetos, dos quais o primeiro verso (do segundo ao décimo quarto soneto) é tomado do último verso do soneto anterior, sendo o primeiro verso do primeiro soneto o último do décimo quarto. O décimo quinto soneto da coroa reúne os primeiros versos de todos os catorze anteriores, na mesma ordem em que aparecem (BORRALHO, 2016, p. 11).

A coroa de sonetos, no Brasil, se relaciona com a obra do poeta inglês John Donne, de temática religiosa, pouco conhecida e traduzida. “A sequência de sete sonetos religiosos que compõe La Corona foi traduzida no país apenas por Afonso Félix de Sousa (1983)” (FLORES; MARTINI, 2009, p. 29).

Sobre Afonso Félix, Sechin (2015, p. 1) ressalta os dotes de “cronista, dramaturgo, impecável tradutor de Villon, Donne e Garcia Lorca, mas sobretudo poeta - por tudo o que nos deu louvado seja”.

LA CORONA Concede-me a coroa de prece e de louvor / Tecida em minha humilde e devota tristeza, / Tu que tens, ou melhor, és a própria riqueza, / E mudas o passado imutável, Senhor; / Mas não uma coroa de louros sobre a testa, / Que eu leve como prêmio por meu estro sincero, / Mas a tua, a de espinhos, que me coroe eu quero, / Pois sendo ela de Glória, sempre a florir, não cresta. / Se o fim coroa as obras, coroas nosso fim, / Porque no fim começa nosso eterno repouso; / O fim primeiro e extremo, tu o guardas zeloso, / Com grande sede o espero, para ele ao mundo vim. / Agora que a alma e a voz sobem ao céu é certo: / A salvação de quem a deseja está perto. HORTA, 2013, p. 12)

Os estudiosos da coroa de sonetos a consideram uma espécie de equação de difícil elaboração, o que exige esmero e critério por parte dos poucos poetas cultores dessa forma de fazer poesia. Quanto ao tema, este é único em uma coroa, mas o comportamento dos poemas individualmente (por subtemas) não os desvincula do eixo, entretanto, cada peça tem sua independência como soneto de sentido completo.

Os sonetos wagnerianos são, inclusive, exemplares de obras rebuscadas, de vocabulário que exige conhecimento e domínio do vernáculo. Aqueles leitores mais ligados ao trivial, ao simplismo, não apreciariam essas peças de raro valor e que remetem aos trabalhos de outras artes, a exemplo da música erudita, da estatuária em mármore, das catedrais em bordados áureos.

As pedras preciosas, tanto de Ave, Caesar... quanto de Uma visão do aedo estão cravejadas em grinaldas sofisticadas. Agem no cenário dos versos personagens a exemplo de Mavorte, ou Marte, o deus mitológico romano da guerra; Crono, o filho do poderoso Urano, também da mitologia grega, figuras recorrentes nas obras de Wagner, criando visões dramáticas nos olhos do aedo.

As cenas descritas fazem acudir à mente do leitor a paisagem byroniana entre o onírico e o real, em Darkness. Assim, “O aedo busca desvendar o arcano/ Que os céus opõe ao ínfero profundo, / E a passo tardo segue, vagamundo, / Por veredas de sustos e de engano”. Questiona sobre a justiça divina e acrescenta: “O que é feito do Tártaro sombrio?”. Em sua visitação ao Hades, descreve-o “Por Crono eleito para atroz degredo / Eterno (...)”. A paisagem horripilante é a de um local que “Só para ingresso seu portão se abria, / Por muro tinha altíssimo penedo”. Ali, o personagem principal tem revelações apocalípticas sobre a ascensão e queda de impérios, advindo-lhes o caos que confunde a Verdade e a Justiça.

Os versos estão artística e firmemente fixados na estrutura da coroa, como em Ave, Caesar... (2013, soneto 2, p. 9): Importa é ser temido, não amado, / Não é amor o que dele se espera; À morte condenar os adversários / Sentenças proferindo sem processos (idem, soneto 13, p. 31); E a iludida gente o não contesta. (Idem, soneto 15, p. 35). Não se pode ignorar nas entrelinhas desses versos assinalados que os dois primeiros remetem aos ensinamentos de Maquiavel (“É melhor ser temido do que amado”, em O Príncipe. E os outros combinam com determinados fatos jurídicos e políticos da atualidade.

Uma imagem poética trabalhada em luz e ouro se põe à frente do leitor nos magníficos versos do soneto 11, em Uma visão do aedo (2015, p. 27): Foi-se apagando, vela bruxuleante / Em castiçal dourado derretida. Ou quando o aedo Viu deuses cuja fuga era ilusória / aqui vivendo em plena potestade. (Idem, soneto 13, p. 31).

Ave Caesar, morituri te salutant é a famosa frase proferida pelos gladiadores romanos, no Coliseu, perante o povo e o Imperador, antes do combate. Esta frase serve também para ser repetida pelos gladiadores do verso, com um significado particular, tendo em vista ser uma honraria cultural conhecer o trabalho de um sonetista que trança os versos em uma coroa de sonetos.

Ave, Caesar..., de Wagner Ribeiro, (sonetos 1 a 4) mergulha no mais profundo do oceano do eu e desvela a personalidade e o comportamento humanos alterados à perversão quando investidos do poder. O uso da justiça em causa própria, a preferência pela máscara do cinismo e pela força das armas.

Os sonetos se sucedem quais etapas da transformação em que o soberano se despe inteiramente de quaisquer sentimentos humanos e a máscara adere à vera face. O poderoso segue gradativamente tornando-se fera, sedento de mais e mais poder. À altura do soneto 5, avoluma-se o arsenal enquanto súditos que escapam do fio da espada, tanto se submetem quanto aprovam a dizimação, desconhecendo-se uns aos outros (soneto 6).

A narrativa segue ao passo em que a crueldade reveste o “coração de quem impera” e avança ceifando mais e mais vidas. No soneto 7 a batalha endurece banalizando o crime a ponto de imperador e sequazes se esvaziarem de todo e, ainda que o desejassem, não saberiam mais como retomar o caminho de volta. No soneto 8 o cenário é aquele no qual se alastra a vileza, à semelhança de uma epidemia “E o império, por si só, tudo coonesta”.

A próxima etapa, soneto 9, é o da perda total e irreversível de princípios e valores, é a degeneração social. No soneto 10, o imperador, perdido em si e na ganância do poder, entende-se a própria Divindade e sua cegueira, como a dos olhos das máscaras, o faz sentir-se acima da Lei e da Verdade.

Depois, nada mais há a fazer (soneto 11), a frieza e a indiferença se generalizam e definem o contexto subjugado, servil. Na batalha do soneto 12 estabelece-se a falsidade e a sordidez como princípios legítimos e puros. O soneto 13 enfrenta o fragor da desmoralização dos Tribunais que, dominados e também cegos, validam todos os “abjetos meios” para a instauração da nova ordem (o caos). Ah, quanto isto nos parece familiar... O fechamento (soneto 15), último recurso do poeta, crava o Jubileu Dourado , de 545,67 quilates que encima a coroa, brilhando indiferente sobre a sentença de morte dos adversários e a disponibilidade de soldados criminosos.

Ingresso no parágrafo de fechamento deste texto tendo a certeza de que se fosse um plano de aula, esta seria uma aula que precisaria estender-se por outras 14 preleções, (com a participação do aedo) encadeadas como os sonetos de uma coroa, no sentido de que todos precisamos aprender mais acerca de uma forma de tratar e produzir uma composição poética coroada de glórias como o é o soneto.

REFERÊNCIAS

BORRALHO, Maria Luísa Malato. Metamorfoses do Soneto: Do “Classicismo” ao “Romantismo”. Disponível em: http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/11630.pdf Acesso em 19 de fev de 2016

ECO, Humberto. Sobre a literatura. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: BestBolso, 2011

FLORES, Lawrence; MARTINI, Marcus de. Traduzindo La Corona, de John Donne. Rev. Let., São Paulo, v.49, n.1, p.29-46, jan./jun. 2009. Disponível em: http://seer.fclar.unesp.br/letras/article/viewFile/1747/1422 Acesso em: 18 de fev de 2016

HORTA, Anderson Braga. Poesia de Ledo Ivo. Disponível em: http://www.anenet.com.br/wp-content/uploads/2015/11/Jornal_ANE_54_impressao.pdf Acesso em 17 de fev de 2016

RIBEIRO, Wagner. Ave Caesar... Aracaju: Sercore Artes Gráficas, 2013

RIBEIRO, Wagner. Uma visão do aedo. Aracaju: Sercore Artes Gráficas, 2015

SECCHIN, Antônio Carlos. A poesia de Afonso Félix de Souza. Disponível em: http://www.jornaldepoesia.jor.br/afonsofelix1.html Acesso em: 20 de fev de 2016