OS DEUSES MORREM! VIVAM OS DEUSES!
 
Em um episódio da série SANDMAN, Neil Gaiman, seu criador, questiona para onde vão os deuses que não cultuamos hodiernamente e exemplifica com o caso de uma antiga divindade egípcia que se tornou dançarina, após esquecida.  Para onde  foram Pan Gu, da China; Ishtar, da Suméria; Ormuz, da Pérsia; Balder, da Noruega;  Dioniso, da Grécia; Ísis, do Egito e tantas outras divindades que eram, para nossos ancestrais, tão reais, e que hoje já não cultuamos mais? Será que, daqui a alguns séculos, Alah e Jeovah também entrarão para esta lista de “extintos”?

Na  ficção científica é habitual vermos povos de diversos planetas cultuarem seres que vêm de outros mundos, como divindades. Na série Star Trek Deep Space Nine, por exemplo, os seres que vivem dentro de um “buraco de minhoca” (portal entre quadrantes do universo) são considerados pelos “bajorianos” como divindades, e o próprio terráqueo, comandante da nave, o comandante Benjamin Sisko, tido como seu emissário.  Nos episódios das outras séries de Jornada nas Estrelas, seja com Kirk, Spock e Magro ou  com Pickard, é recorrente esta interpretação, tendo eles mesmos sido tomados por divindades. Eram os deuses astronautas? Comum a todos é que a busca por um único deus, criador do universo, acaba sempre frustrada. Já Star Wars, com a sua visão panteísta, tenta despersonalizar esta visão antropomórfica da divindade, exaltando a Força como o elemento vital do Universo.

Do panteão nórdico, a Marvel tomou emprestada uma divindade para viver entre os humanos: Thor, o deus do trovão. Personagens com “poderes divinos” sempre me causaram estranheza nos quadrinhos, pela disparidade entre seus poderes e os dos “humanos”, até que compreendi que estas divindades são tão limitadas quanto qualquer outro super-heroi: elas sangram, elas sofrem, elas sentem dor. Thor vem de outra “dimensão”, não de um eterno “paraíso”, como as divindades judaico-cristãs. Originalmente ele vive em um “sistema de planetas”, que compreende não só Asgard, sua terra, como várias outras. Seus parceiros vivem, amam, guerreiam, procriam e morrem, exatamente como nós! Seus poderes não são ilimitados e sua autoridade é condicionada por seu pai, Odin.

O Thor dos quadrinhos, criado pelos gênios Stan Lee, Jack Kirby e Lary Lieber, em 1962, assim como nós “evoluiu” ao longo da sua existência. Para ter uma lição de humildade, Odin o condena a viver parte do tempo na Terra, como o doutor Donald Blake, um médico manco (assim como o Dr. House). O Thor que vemos hoje, nos cinemas e nos quadrinhos, já superou esta fase. E é justamente destas graphics novels, que quero falar. Nos últimos quatro anos conheci cinco delas: “Loki”, “Os Julgamentos de Loki”, “Por Asgard”, “Em Nome do Pai” e “O Carniceiro dos Deuses”, a mais recente, de Jason Aaron e Esad Ribic, que me motivou a escrever este texto. Na história, Thor percorre diversos mundos, constatando cruéis assassinatos de suas respectivas divindades. Os deuses estão morrendo barbaramente nas mãos de um ser chamado Gorr (nome que lembra Gog, a divindade apocalíptica bíblica), que deseja exterminar todos os deuses do universo. Sob este olhar, os deuses também são mortais, apenas com poderes especiais, adquiridos ou desenvolvidos, assim como todos os nossos super-heróis (pausa: para entender melhor esta relação, sugiro a leitura de “Nossos Deuses São Super-heróis”, de Christopher Knowles).

Como todos os heróis, Thor também o seu arquiinimigo, Loki, o deus das trapaças, seu irmão adotivo, que com seu capacete de chifres e sua lança em forma de tridente, nos remete propositalmente a Exu e a Satanás (o lado negro da Força). A difícil relação entre os dois é explorada na graphic novel “Loki”, onde fica evidente que um jamais poderá destruir o outro, por serem seres complementares. Sempre me perguntei porque o Batman nunca matava o Coringa; o Superman nunca eliminava Lex Luthor ou o Homem-Aranha nunca exterminava o Duende Verde, quando tinham oportunidade. Não é pelo senso de justiça, nem para as histórias terem continuidade: é simplesmente por que não podem eliminar o seu oposto complementar, assim como nós não podemos eliminar a nossa “Sombra”, no sentido junguiano do termo. É o vilão quem realiza o herói. É na superação dos obstáculos, das dificuldades, dos desafios, das provas, que eles (e nós) crescemos. Por isso Krishna questiona Arjuna, no Bhagavad Gita, quando ele não quer lutar, para derrotar seus “parentes”: como esta covardia tomou conta de você? É no confronto com o oposto, nesta alquimia existencial, que humanos se tornam heróis, e heróis se tornam deuses (outra leitura recomendada: “O Heroi de Mil Faces”, de Joseph Campbell).

Ao compor a equipe dos Vingadores, junto com indivíduos tão desiguais quanto o Ironman, Capitão América e Hulk, o “deus” Thor está realizando esta síntese entre a aparente dicotomia entre o humano e o sagrado, equilíbrio difícil e delicado que vemos em seres especiais, como o Dalai Lama, o Papa Francisco, Gandhi, Sai Baba, Osho ou Chico Xavier.
Recomendo a leitura atenta e aprofundada da saga destes e de outros super-heróis, verdadeiros arquétipos contemporâneos. Thor nos dá a dimensão da infinitude de cada instante e dos limites da nossa pretensa imortalidade.

Vida longa e próspera. Que a Força esteja com vocês.

Goulart Gomes, Bahia, 02-01-2016.