Eu sou o Rio
Tal como sói acontecer com grande parte de meus compatriotas brasileiros, mantenho certa relação de amor e ódio para com meu país. Podemos pecar em vários aspectos como nação devido a certos andrajos datados de nosso período colonial que ainda insistimos em manter, e séculos se passarão antes que possamos ser levados a sério em meio às grandes superpotências que regem o globo, mas nossas deficiências político-administrativas são mais do que compensadas pelo extenso rol de ilustres figuras imortalizadas em meio aos anais de nossa História, que tanto fizeram para alçar o nome de nosso relativamente juvenil país ao reconhecimento mundial – seja nas artes, literatura ou feitos militares –, e nas belezas naturais descritas de forma tão singela e simultaneamente magistral por nosso bardo Gonçalves Dias na “Canção do exílio” que eu próprio, na inexperiência de meu ofício, não saberia fazê-lo melhor.
Apesar de meu coração macerado por diversas decepções ao longo de minha existência, às vezes não posso deixar de me contagiar pelo estereótipo propagado desde os tempos da Tropicália de que o Brasil é aquele famoso “país tropical abençoado por Deus e bonito por natureza” que aguarda pelo Carnaval todo fevereiro. Só Deus sabe, porém, o tamanho de minha aversão por este estereótipo – sei que nem todos podem compartilhar desta alegria ufanista, e muitas vezes ela me é negada. Um dos grandes problemas de minha pátria é que os não-conformistas, as “ovelhas negras”, os marginalizados, os loucos não têm o direito de participar desta felicidade coletiva, sendo dela excluídos feito párias – o que, na melhor das hipóteses, azeda tais existências com a boca torta da ironia, este bálsamo tão agridoce.
Certos autoproclamados “arautos da verdade” tomaram para si a obrigação de retratar em suas obras o Brasil “como ele é”, não poupando os termos de crítica mais duros – termos estes que, de tão deselegantes em estilo, acabam por tornar a suposta crítica em algo quase que ingênuo, perdendo seu poder para caminhar rumo a tornar-se um pueril chavão. Muitos podem dizer que “Que País É Este?”, do grupo Legião Urbana, é a mais pertinente crítica já feita às instituições de nosso país, mas nenhum artista ou banda chegará perto de pintar um retrato tão vívido e fiel do Brasil quanto o conjunto Black Future o fez em seu único álbum, “Eu Sou o Rio”, de 1988.
No mesmo ano da promulgação da “Constituição Cidadã”, em que o povo celebrava com otimismo sua liberdade das amarras da ditadura militar e mirava com esperança para o horizonte, onde despontava o Sol da democracia, o Black Future parecia seguir na contramão destes sentimentos esperançosos, e lançou um dos álbuns mais amargurados e sardônicos como nunca se havia visto antes em todo o país. A voz do (apropriadamente nomeado) vocalista “Satanésio” carrega um dolorido e irônico timbre venenoso e autodepreciativo que goteja feito chumbo derretido na alma do ouvinte – e, para um álbum intitulado “Eu Sou o Rio”, com exceção da faixa-título, a sonoridade vertiginosa e quase que opressiva nada tem a ver com o afamado samba da Cidade Maravilhosa.
Após a breve e cacofônica introdução instrumental “Dança da Chuva”, somos agraciados com o niilismo de “Sinfonia para um Morto”, o tédio existencial sintetizado em “No Nights”, a malévola imprecação do eu lírico de “Teatro do Horror”, o devaneio tingido de alucinógenos de “Bem Depois…” e a mordaz crítica anticlerical de “Piada”, encerrando literalmente com o fim de todas as coisas – a aniquilação da criação – o Ragnarök – em “Thor e Loki”. Mas queiramos dirigir nossa atenção à faixa-título, que é o mais perfeito quadro do Rio de Janeiro (e, por metonímia, do Brasil) já concebido por qualquer um de meus conterrâneos.
Nesta sarcástica (e, ao mesmo tempo, séria) homenagem, Satanésio incorpora o Rio dos marginais e dos boêmios, daqueles que vivem além das luzes e do bulício da cidade, nas “favelas que fedem a lixo”. O Rio da praia, do futebol, da caipirinha e do Sol é contraposto ao Rio de ruas engarrafadas e muitas e muitas desgraças, onde Zé Keti e Cartola compõem a trilha sonora diária. As vozes inauditas dos esquecidos se sobressaem, ocultas forçosamente sob o véu de uma bonança sem fim – fingida.
Por alguma circunstância infeliz o Black Future não sobreviveu além da década de 1980, e só posso me perguntar como os eventos subsequentes de nossa conturbada História forneceriam inspiração a estes poètes maudits. Entretanto, qualquer um poderia garantir-lhes, na hipótese de ressuscitarem neste exato momento como num passe de mágica, que uma coisa não mudou desde 1988 – e até que mude, muito tempo haverá de se passar: o mesmo Brasil das palmeiras onde canta o sabiá também é o Brasil “do desespero e da maldade – da mediocridade – da falta de sonhos”.
(São Carlos, 17 de abril de 2021)