- Ele não se suicidou. Foi Kafka, que matou Danilo foi Kafka. (O senhor agora vai mudar de corpo – Raimundo Carrero, Ed. Record: 2015)
Basta pinçarmos o fragmento de um dos diálogos do último livro de Raimundo Carrero para nos convencermos que estamos diante de uma literatura semeada nas entranhas, que brota ensopada da vida e da morte. Num tempo em que o livro é fabricado como o mais vulgar dos objetos, causa alento a leitura intensa e revigorante um trabalho delicadamente esculpido por um mestre. Desde a primeira sílaba lida, a sensação foi a de me lançar numa corredeira desenfreada, numa queda livre vertiginosa. Não tive medo, porque não cabe o medo na descoberta. A boa literatura é o ato de descobrir-se, é a única trilha possível que nos conduz à alma.
Como escritor nordestino, Carrero é testemunha de textos que refletem a condição árida do sertão. Como autor, não escolheu o lugar comum da miséria sertaneja ou, como ele mesmo diz, das caveiras de bois, da terra estorricada, das cercas quebradas e da falta d’água. Preferiu explorar a complexidade fértil da condição humana, fez do escrever a obsessão pelo mergulho profundo que exige o limite do fôlego.
“O senhor agora vai mudar de corpo” abre a primeira página com a intimidação da morte, a expectativa do inevitável e a surpresa com a possiblidade da sua antecipação indesejada. Em toda a sua breve extensão, o livro é permeado por uma desesperança que se confunde com a necessidade da fé, uma fé que não quer ser mística, mas consequência da necessidade de sobreviver para criar. A arte como genitora da vontade de viver.
Impotente após sofrer um inesperado AVC, o escritor vagueia pela angústia dos que sofrem da falência do corpo em conflito com a nostalgia dos sentidos. Cego e paralisado pelo derrame, o que transparece é que a maior dor nasce da solidão imposta pela mutilação da palavra. Sem conseguir falar, sem poder escrever, o homem é um vácuo entregue ao limbo da existência. É nessa escuridão momentânea, trágica e irremediável, que ele pondera sobre o caráter indomado de outros autores. Remete-se à Clarice Lispector e destaca o sentido selvagem de uma literatura que parecia escrita com sangue.
A agonia da inércia física detona um atrito espiritual, o escritor deseja a reabilitação, anseia pelo milagre. No entanto, não se considera merecedor, não reconhece em sua jornada um único momento santo que lhe valesse qualquer benção. Quer se despojar das vaidades. Quer renegar até a humildade, que talvez seja a maior das vaidades, a pior das hipocrisias. Quer merecer. Cada página virada nos faz incorporar o despedaçado narrador, somos empurrados junto com ele pelo sopro da religião que consola. “Não temas, eu estou aqui”... A frase de Cristo é a ilha do náufrago.
Urubus, aranhas e morcegos passeiam pelas folhas de papel que pulsam como criatura viva. Alegorias que espreitam a vida efêmera, que encarnam a morte; alegorias que confirmam a origem nordestina da história; alegorias que tornam o enredo universal. Metáforas que consumam o significado de tudo. A morte que não impede que a arte seja a declaração incessante da beleza.
Impulsionado pela contínua volúpia de parir a obra, o autor expressa a sua perplexidade diante da opção alheia pelo suicídio, demonstra fascínio e desgosto pelos jovens que se suicidam. A solidão, a agonia e a felicidade do homem que confirmam a derradeira sentença de se matar. A inexplicável “decisão feliz dos suicidas”.
Há menções associadas ao cinema. Há imagens que evocaram Fellini em minha mente, apesar de eu não conseguir determinar o porquê. Há uma névoa folclórica que o escritor não se inibe em assumir quando afirma que o folclore é o símbolo da condição humana.
Raimundo Carrero nos impõe sua escrita ágil, enxuta e de uma densidade atmosférica sufocante. Uma literatura visceral a cada linha, a cada parágrafo, a cada capítulo. Não, não cansa. Somos sugados pelo redemoinho feroz de cada palavra que reconstrói um homem encarando o possível epílogo da sua realidade. Somos tragados pela verdade do texto.
Literatura não é ciência, é arte, reunião de elementos estéticos – ele diz.
“O senhor agora vai mudar de corpo” não se contenta em ser apenas um romance, é um tributo à literatura, ao artista, é o registro da maturidade absoluta de um escritor, é o próprio milagre que o autor busca nas páginas que compôs.
Basta pinçarmos o fragmento de um dos diálogos do último livro de Raimundo Carrero para nos convencermos que estamos diante de uma literatura semeada nas entranhas, que brota ensopada da vida e da morte. Num tempo em que o livro é fabricado como o mais vulgar dos objetos, causa alento a leitura intensa e revigorante um trabalho delicadamente esculpido por um mestre. Desde a primeira sílaba lida, a sensação foi a de me lançar numa corredeira desenfreada, numa queda livre vertiginosa. Não tive medo, porque não cabe o medo na descoberta. A boa literatura é o ato de descobrir-se, é a única trilha possível que nos conduz à alma.
Como escritor nordestino, Carrero é testemunha de textos que refletem a condição árida do sertão. Como autor, não escolheu o lugar comum da miséria sertaneja ou, como ele mesmo diz, das caveiras de bois, da terra estorricada, das cercas quebradas e da falta d’água. Preferiu explorar a complexidade fértil da condição humana, fez do escrever a obsessão pelo mergulho profundo que exige o limite do fôlego.
“O senhor agora vai mudar de corpo” abre a primeira página com a intimidação da morte, a expectativa do inevitável e a surpresa com a possiblidade da sua antecipação indesejada. Em toda a sua breve extensão, o livro é permeado por uma desesperança que se confunde com a necessidade da fé, uma fé que não quer ser mística, mas consequência da necessidade de sobreviver para criar. A arte como genitora da vontade de viver.
Impotente após sofrer um inesperado AVC, o escritor vagueia pela angústia dos que sofrem da falência do corpo em conflito com a nostalgia dos sentidos. Cego e paralisado pelo derrame, o que transparece é que a maior dor nasce da solidão imposta pela mutilação da palavra. Sem conseguir falar, sem poder escrever, o homem é um vácuo entregue ao limbo da existência. É nessa escuridão momentânea, trágica e irremediável, que ele pondera sobre o caráter indomado de outros autores. Remete-se à Clarice Lispector e destaca o sentido selvagem de uma literatura que parecia escrita com sangue.
A agonia da inércia física detona um atrito espiritual, o escritor deseja a reabilitação, anseia pelo milagre. No entanto, não se considera merecedor, não reconhece em sua jornada um único momento santo que lhe valesse qualquer benção. Quer se despojar das vaidades. Quer renegar até a humildade, que talvez seja a maior das vaidades, a pior das hipocrisias. Quer merecer. Cada página virada nos faz incorporar o despedaçado narrador, somos empurrados junto com ele pelo sopro da religião que consola. “Não temas, eu estou aqui”... A frase de Cristo é a ilha do náufrago.
Urubus, aranhas e morcegos passeiam pelas folhas de papel que pulsam como criatura viva. Alegorias que espreitam a vida efêmera, que encarnam a morte; alegorias que confirmam a origem nordestina da história; alegorias que tornam o enredo universal. Metáforas que consumam o significado de tudo. A morte que não impede que a arte seja a declaração incessante da beleza.
Impulsionado pela contínua volúpia de parir a obra, o autor expressa a sua perplexidade diante da opção alheia pelo suicídio, demonstra fascínio e desgosto pelos jovens que se suicidam. A solidão, a agonia e a felicidade do homem que confirmam a derradeira sentença de se matar. A inexplicável “decisão feliz dos suicidas”.
Há menções associadas ao cinema. Há imagens que evocaram Fellini em minha mente, apesar de eu não conseguir determinar o porquê. Há uma névoa folclórica que o escritor não se inibe em assumir quando afirma que o folclore é o símbolo da condição humana.
Raimundo Carrero nos impõe sua escrita ágil, enxuta e de uma densidade atmosférica sufocante. Uma literatura visceral a cada linha, a cada parágrafo, a cada capítulo. Não, não cansa. Somos sugados pelo redemoinho feroz de cada palavra que reconstrói um homem encarando o possível epílogo da sua realidade. Somos tragados pela verdade do texto.
Literatura não é ciência, é arte, reunião de elementos estéticos – ele diz.
“O senhor agora vai mudar de corpo” não se contenta em ser apenas um romance, é um tributo à literatura, ao artista, é o registro da maturidade absoluta de um escritor, é o próprio milagre que o autor busca nas páginas que compôs.