Daniel Johnston
Como portador de síndrome de Asperger, posso dizer com toda a certeza que o tratamento dado aos neurodivergentes pela sociedade é aviltante. Seja pela falta de meios de se aprender a respeito de qualquer condição mental, ou falta de interesse da população em educar-se, o capacitismo ao qual tanto eu quanto vários outros como eu somos expostos faz-nos o sangue ferver – como expostulado de forma tão verídica no filme “Coringa”, “a pior parte de se ter um transtorno mental é a sociedade esperar que aja como se não o tivesse”.
Minha ambição não é ser o porta-voz de todos que compartilham de minha condição, mas apenas gostaria de deixar bem claro a meus leitores que pessoas como eu passam por vários problemas; nossa mente pode tornar-se um inferno, e é difícil que nos encaixemos entre as mazelas de uma sociedade que tanto exige de nós aquilo que não podemos dar, porém não deixamos de ser indivíduos que possuem gostos, desgostos, necessidades afetivas e, principalmente, anseios por lugar de fala.
Em meu ensaio anterior a respeito da obra de Damião Experiença já exprimi meu enorme apreço por artistas “marginais”, e reitero que o elo entre criatividade e distúrbios mentais é, para mim, uma das mais interessantes coisas a serem estudadas. Na falta de meios de comunicação “normais”, a Arte sempre estará lá para auxiliar a voz daqueles que estiveram privados de uma. Neste ponto é que a estrada se bifurca: alguns podem valer-se da Arte para liberar seus anárquicos posicionamentos (como é o caso de Damião), já outros depositam nela tudo aquilo que guarda seu coração e que é incapaz de exprimir de outros modos – que é o que ocorre com a outra face da moeda de Damião, Daniel Johnston.
Tendo lutado com sua saúde mental até o fim da vida e passado extensos períodos de tempo em instituições psiquiátricas, Johnston encontrou na música sua janela de comunicação com o mundo; e enquanto alguns podem pensar que tal perspectiva seja um tanto quanto trágica e deprimente, é o exato oposto que seu trabalho demonstra: mesmo que a produção de suas fitas cassete seja crua, até mesmo tosca, e sua voz falte em harmonia, o que surpreende é a docilidade ingênua, quase infantil, de suas músicas. Tão inocentemente quanto uma criança o faria, canta sobre suas decepções, preocupações, amores e o “dread of madness” – a simplicidade de suas letras pode parecer deselegante à primeira vista, mas eu próprio diria (e não me importo se isto faz com que eu pareça demasiado presunçoso) que, aproximando-se de William Blake, a quem já defini como o santo padroeiro dos “outsiders”, prossegue com a tradição por ele iniciada com as “Canções de Inocência e Experiência”, que não precisam ser demasiado densas e complexas para serem apreciadas. Às vezes não há problema em ser simples: poderia até mesmo fazer uma glosa de um belíssimo ensinamento de Cristo (“Deixai vir a mim as crianças…”), mas sou poeta e não exegeta bíblico; não me arriscarei em territórios que me são desconhecidos.
Digo, no entanto, que Daniel Johnston era uma mente iluminada, e talvez “bom demais para este mundo”, empregando um adágio repetido geralmente sobre figuras dele imerecidas. Muito provavelmente vários outros Johnstons existam mundo afora, lutando para que sejam ouvidos em meio a uma sociedade que os menospreza e recebam aquilo que todos precisam, sejam portadores de algum distúrbio mental ou não: afeto e um ombro amigo. Como Johnston, precisamos de alguém que nos diga apenas quatro palavras, tão simples mas que podem fazer a diferença em nosso dia se pronunciadas de forma sincera:
“HI, HOW ARE YOU?”
(São Carlos, 1º de maio de 2022)