“Aquele que cometer sete homicídios, usando um punhal diferente para cada um, atingirá o Nirvana. ” - (O sétimo punhal. Víctor Giudice – ed. José Olympio, pág.10)
 
O decorrer de 2014 ficou marcado pelos 80 anos do nascimento deste gigante da nossa literatura, já falecido, tão pouco divulgado e menos ainda reeditado. Depois de várias releituras dos romances que ele escreveu, decidi eu mesmo destacar Víctor Giudice, um dos meus autores favoritos.
 
Atravesso 2015 pensando sobre como em como permitimos que tesouros sejam soterrados. Talvez, todo esse esquecimento sirva à glória de algum arqueólogo que desencave o melhor das nossas criações daqui a séculos. Se algum editor mais perspicaz abandonasse a ignorância orgulhosa do sorriso banguela e desistisse das burocráticas entrevistas à mídia, encontraria tempo para descobrir em “O sétimo punhal” um potencial best-seller para republicar e impor a justa divulgação.
 
“O pior tormento da existência é a angústia secreta. ” - (O sétimo punhal - Víctor Giudice – ed. José Olympio, pág.11)
 
Comentar a obra de Giudice é uma responsabilidade para poucos e não me considero um dos eleitos, mas posso me reservar à humilde função de cumprir uma homenagem despretensiosa a um dos seus livros que mais me impressionam, dentre todos os preferidos que possuo dele. Em “O Sétimo punhal”, romance magnífico (certamente, um dos melhores da nossa literatura), imergimos na atmosfera de mistérios que revela uma variação original do suspense noir que passeia pela zona norte carioca e faz visitas a Petrópolis.
 
“Como a vida é traiçoeira. Anos depois, aquela casa decorada à moda dos filmes de vampiro seria meu único refúgio. ” - (O sétimo punhal - Víctor Giudice – ed. José Olympio, pág.38)
 
Conheço escritores que trabalham com a esnobe pretensão de virarem filme. O texto do Víctor já nasce filme desde o primeiro parágrafo, espontaneamente.
 
“(...) por mais que me esforce para permanecer dentro da realidade, a imaginação me marginaliza...”  - (O sétimo punhal - Víctor Giudice – ed. José Olympio, pág.135) 
 
Esta obra-prima começa se afirmando pela capa fundamental de Floriano Almeida, com a pintura de Tamara de Lempicka. Imagem que, por si só, num efeito de êxtase hipnótico, nos captura e nos arremessa à curiosidade irrefreável da leitura. O título do livro possui a força dramática digna dos melhores clássicos, outro convite irresistível para percorrermos as suas páginas. Logo nas primeiras folhas, esbarramos com a epígrafe:
 
 Fazer literatura é perder uma partida disputada com o imaginário. ” – Quem assina é uma das personagens da história: Júlia Samaritana de Almeida Negresco.
 
A partir daí, somos reféns irresgatáveis, prisioneiros voluntários seguindo a passos largos para a derradeira página.
 
Com este livro, Víctor Giudice provou que não foi apenas um dos melhores contistas da literatura contemporânea do Brasil, assume-se também como um magistral romancista, mestre absoluto de uma narrativa lapidar que serve à ficção e não a si mesma.
 
“Não vou me perder em descrições porque beleza não se descreve. Além do mais, em sua grande maioria, as belezas são subjetivas” - (O sétimo punhal - Víctor Giudice – ed. José Olympio, pág.14).
 
Ainda jovem, eu enxergava o autor, a quem conheci pessoalmente, como um personagem da Renascença, um artista que possuía conhecimentos profundos sobre música, literatura, pintura, cinema e fotografia. Sem nenhum traço de egoísmo, ele compartilhou na escrita toda a sua fortuna intelectual.
 
“(...) o emblema da vida é o olhar. ” - (O sétimo punhal - Víctor Giudice – ed. José Olympio, pág.147)
 
Percorro a prosa do Víctor esbarrando em preciosos vislumbres poéticos que tornam a catarse inevitável.
 
À primeira vista, “O sétimo punhal” pode parecer uma trama de suspense, um romance policial guiado por elementos de amor e ódio. Não, não é só isso. Toda a intriga equilibra-se num refinado e instigante erotismo, a verdadeira tensão ultrapassa os enigmáticos assassinatos que se sucedem. A sutileza ergue, gradativamente, o clímax do enredo a partir da sedução enxadrística, tácita e vibrante entre duas mulheres: a voz feminina que conduz a narrativa (que não nos revela o nome) duelando com Negra, a dissimulada coadjuvante.

“O sujeito que comete assassinatos em série não é obrigatoriamente um louco. O que ele tem é uma neurose obsessiva, que determina uma necessidade de colecionar homicídios. Todo colecionador é um parente próximo do serial killer. ” - (O sétimo punhal - Víctor Giudice – ed. José Olympio, pág.113)
 
Escrito na complexidade da primeira pessoa, o texto é um coração acelerado, apressando o ritmo das batidas até alcançar a combustão do desfecho catalisador.
 
“Se algum dia você quiser escrever um livro para estourar a banca, use a vingança como ingrediente principal. É tiro e queda. ” - (O sétimo punhal - Víctor Giudice – ed. José Olympio, pág.65)
 
Em várias passagens, o autor não se furta de abordar o discurso da metaliteratura e o faz com atual inteligência crítica, que pode servir à reflexão sobre a precariedade dos temas que vemos jogados hoje nas gôndolas das livrarias.
 
“Agora, fazer literatura vai muito além disso (...) Pra início de conversa, você tem que se habituar à derrota. Literatura mesmo, eu nunca fiz. Mas os grandes escritores dizem que sentem uma espécie de frustração quando acabam um livro. ” - (O sétimo punhal - Víctor Giudice – ed. José Olympio, pág.129)
 
O sétimo punhal” foi lançado em 1995 e o humor também se associa à história, temperando cada virada com estocadas em uma sociedade que continua lutando para livrar-se os vícios das suas piores hipocrisias.
 
“Viver, em toda a plenitude do conceito, é se deixar contaminar pela vida alheia, sem amarguras, sem repulsas, sem preconceitos. ” - (O sétimo punhal. Víctor Giudice – ed. José Olympio, pág.92)
 
Víctor não deixou por menos: Chopin, Bartok, Mozart e o Parsifal de Wagner cumprem a trilha sonora soprada aos nossos ouvidos a cada novo capítulo.
 
“Tempos depois, nós nos sentamos no tapete e ouvimos o Parsifal, do começo ao fim. Quase cinco horas de música. Toda aquela divindade se apossou de nós e a música passou a fazer parte de minhas crenças. ” - (O sétimo punhal - Víctor Giudice – ed. José Olympio, pág.91)
 
São Cristóvão e Tijuca são cenários obrigatórios na literatura de Víctor Giudice e nisso ele me remete a Nelson Rodrigues, transferiu para a sua arte a própria vivência dos bairros cariocas onde morou. Neste livro, algumas vezes, as locações se revestem de uma aura sombria, o pano de fundo que emoldura os crimes inquietantes.
 
“(...) toda luz gera uma sombra...” - (O sétimo punhal - Víctor Giudice – ed. José Olympio, pág.88)
 
Com o autor, mantive uma modesta convivência, menor do que aquela que cultivaram outros amigos que faziam parte do mesmo círculo. Só que com ele o pouco virava muito e guardei intensas recordações da amizade que travamos. Uma dessas memórias reflete o dia em que ele chegou a minha porta, de repente, com uma gravação em vídeo da 9ª Sinfonia de Beethoven regida por Bernstein. Era um presente. Víctor sentou-se, pediu um copo de Coca-Cola, conversamos um pouco e após meia hora se despediu me deixando para sempre a alegria generosa e otimista da sua música.

 
Alexandre Coslei
Enviado por Alexandre Coslei em 15/07/2015
Reeditado em 15/07/2015
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