Mervyn Peake e a trilogia “Gormenghast”
Antes que viesse a abraçar a literatura romântica como meio de expressão, cresci como qualquer outro jovem millennial: obtendo meus primeiros contatos com o mundo da literatura por intermédio de sagas populares de fantasia. Há quem torça-lhes o nariz por não considerá-las literatura séria, sendo meros produtos de mercado em massa – mas abaixo estes cadáveres vivos que, ao que tudo indica, nunca foram moços! Claro que sempre haverá aqueles que, se aproveitando da demanda exorbitante de tal mercado, o adentrarão com fins desonestos para obter dinheiro às custas de incautos valendo-se de produtos de qualidade duvidosa, mas não se pode negar que tais sagas, ao menos as mais aclamadas e premiadas dentre elas, servem sim como uma porta a outros tipos de livros.
Recapitulemos meu crescimento criativo juntos: o ano era 2004 e o mundo estava no auge da onda de “Harry Potter”. Eu próprio acabei por ganhar o primeiro livro da série no Natal, e à época foi também o primeiro livro com mais de cem páginas que li. O mundo da série é muito bem pensado, seus personagens são extremamente cativantes, e ensina boas lições sobre amizade, relações pessoais e resiliência – foi aí que pensei que, algum dia no futuro, também eu gostaria de escrever algo que ensinasse belas coisas às pessoas, e pela primeiríssima vez exclamei: “Serei escritor!”.
Dois anos depois – 2006. Tive meu primeiro contato com os treze(!) volumes de “Desventuras em série”, e sua atmosfera gótica e refinado senso de humor negro me marcariam pelo resto da década, servindo como um presságio daquilo que viria a desenvolver. Vale ressaltar que devido à vasta erudição do Sr. Snicket vim a conhecer muitos clássicos, em particular a “Commedia” de Dante. A partir daí, eu obviamente devia conhecer “O senhor dos anéis”; de brinde, conheci “Fronteiras do Universo” levado por minha paixão por William Blake. Li também algumas outras séries não muito dignas de menção, e desde então estagnei com meus bons e velhos Byron, Keats e Shelley.
O destino, entretanto, costuma trazer boas surpresas inesperadamente, e foi graças a um velho amigo que, após anos sem ler uma boa série de livros, fui apresentado a uma trilogia (que não é bem uma trilogia) e a um autor que, mais do que todos os outros, impactou-me a ponto de destronar todos os outros de meu Panteão.
É bem sabido que fui no passado grande entusiasta da subcultura gótica – tendo em vista minhas influências, não deveria surpreender àquele que conhece-me por ler o que escrevo. Como todo bom gótico, adoro Robert Smith e o Cure, que ouço desde os tempos mais remotos de minha pré-adolescência – quando meu humor está moroso, e sinto um narcótico híbrido de sono e tédio, gosto muito de ouvir o álbum “Faith”, que contém uma de minhas canções preferidas que é “The Drowning Man”. Sempre a achei uma letra demasiado trágica e bela, e pesquisando com mais afinco a seu respeito vi que foi inspirada na trilogia “Gormenghast” de Mervyn Peake, da qual nunca ouvira falar – mas se fora lida por Robert Smith não teria como ser ruim. Procurei então saber sobre a carreira de Peake e ver com o que haveria eu de lidar.
Nenhum dos outros autores que havia lido teve uma vida tão exótica e triste quanto a de Peake. Nascido na China meses antes da queda da monarquia, chegou a viver na pequena e desconhecida ilha de Sark no Canal da Mancha e, vitimado por uma doença degenerativa mental em seus últimos dias, faleceu após passar anos numa sucessão de hospitais psiquiátricos. Mais uma vez, o sofrimento dá os ares de sua graça na vida de uma mente criativa – e que mente! Peake daria um rosto à Criatividade caso resolvessem antropomorfizá-la. Poeta, desenhista, pintor, dramaturgo e romancista, todo o seu trabalho é de igual qualidade e imaginação, não havendo nenhum que seja inferior ao outro. Suas ilustrações contêm um ar fantástico e grotesco, quase que caricatural, e são bem remanescentes das figuras deformadas de James Ensor. Ainda assim, são dotadas de bastante charme e elegância. Sua poesia, de inspiração nonsense, ao mesmo tempo que possui temas brincalhões e personagens excêntricos (sendo, neste quesito, um dos maiores precursores de Roald Dahl e Tim Burton), trazem um vocabulário extremamente rebuscado que demonstra seu domínio da arte da palavra. Seu livro de estreia, a fábula infantil “Captain Slaughterboard drops anchor”, já demonstra seu equilíbrio perfeito entre personagens ricamente elaborados tanto visual quanto descritivamente – mas é sobre seu magnum opus que gostaria de discorrer, trazendo-o aos olhos do público sob a radiante luz que merece: a (não-)trilogia “Gormenghast”. Por que digo pela segunda vez que não é uma trilogia propriamente dita? Peço-lhes paciência, pois tenho muito sobre o que falar.
O enredo da série passa-se nos domínios epônimos de Gormenghast: um castelo gigantesco, do tamanho de uma cidade, repleto de torres e várias outras construções seculares. Dotado de um lago e uma montanha também epônimos, o castelo de Gormenghast é completamente segregado do mundo exterior e suas muralhas são intransponíveis. Sua população divide-se entre aqueles que vivem fora das paredes do castelo, os “Bright Carvers” – um povo tribal que, vivendo na mais abjeta pobreza, sobrevive de migalhas advindas de dentro do castelo e das esculturas que presenteia a seus senhores –, e os condes de Groan, a dinastia que rege os domínios de Gormenghast – acompanhados de seus servos.
Todos os membros da família Groan são caricatos e dotados de alguma neurastenia: ao início do primeiro livro, “Titus Groan”, somos apresentados aos personagens principais que haverão de permear os demais livros tanto direta quanto indiretamente. Misturando comédia de costumes, Bildungsroman, ficção gótica, prosa seiscentista com um leve sabor de Charles Dickens e um senso de humor macabro e pré-burtonesco/goreyano, Peake nos descreve, um a um, o melancólico Lorde Sepulchrave, o 76º conde de Groan, que só consegue encontrar alguma alegria de viver em meio aos livros de sua biblioteca; sua esposa Gertrude, acerba e apática, que se importa com seus gatos e pássaros mais do que com qualquer outra coisa no mundo; as irmãs de Sepulchrave, as gêmeas Cora e Clarice, de uma falta de inteligência quase que aflitiva e que almejam roubar o poder de Gertrude; Alfred Prunesquallor, o sardônico médico do castelo, e sua irmã obcecada por homens Irma; o taciturno mordomo pessoal de Sepulchrave, o Sr. Flay, e o repugnante cozinheiro Swelter, cuja rivalidade mútua ocupa grande parte deste primeiro livro; a filha primogênita dos Groan, Lady Fuchsia, aquela doce e negligenciada criança supercrescida sempre presa num mundo de sonhos… e, por fim, o bebê Titus, o próximo conde na linha de sucessão.
Conquanto que Titus seja o personagem principal de toda a série, o foco do primeiro livro é Steerpike – um dos assistentes de cozinha de Swelter que, ao se rebelar contra seu mestre, resolve ascender socialmente cada vez mais na pétrea hierarquia do castelo. Por vingança, malignidade ou mero desejo de abalar as estruturas? Peake deixa à especulação do leitor. Apenas no segundo livro, “Gormenghast”, Titus terá idade suficiente para participar mais ativamente da trama, seu crescimento tendo sido influenciado por anos pelas ações de Steerpike. Cada vez mais dividido entre suas funções como o conde de Groan e seu desejo de ver além das muralhas de Gormenghast, ele deixa seu lar e, no último livro, “Titus alone”, ao explorar uma bizarra cidade futurista, começa a duvidar de sua própria sanidade, e inclusive se os domínios de Gormenghast um dia existiram.
Ao fim do terceiro livro, em que Titus finalmente confronta sua sanidade e, ao mesmo tempo em que abraça seu passado, resolve construir um futuro longe das amarras de seu título de nobreza, parte ele para uma nova aventura – e é aqui que entra a explicação que lhes devo. Peake pretendia escrever muitos mais livros da série, mas a deterioração de sua saúde não o permitiu. Antes de seu falecimento chegou a iniciar o quarto livro; entretanto, não chegou muito longe, tendo escrito apenas um mero parágrafo. Apenas Peake sabe o que aconteceria ao fim da jornada de Titus – mas do jeito que nos foi legada, com seu final ambíguo, a trilogia “Gormenghast” oferece um panorama interessantíssimo e por muitas vezes inquietante da mente mais privilegiada a ter segurado uma caneta, levada de nós por um acaso muito desafortunado. Como ele próprio já escreveu porém, “o mero ato de viver é um milagre”, e se sua vasta e singular obra não prova isto, então não sei o que prova.
(São Carlos, 21 de setembro de 2021)