A perspectiva ética de Nietzsche em sua obra O nascimento da tragédia
É importante e necessário entender algumas ideias chave do pensamento nietzschiano se almejamos entender seu pensamento acerca da moral, ou seja, antes de precipitar uma perspectiva de Nietzsche sobre pressupostos éticos é mister um embasamento mais aprofundado em seu pensamento geral, entender forma e conteúdo, além de sua trajetória especulativa e filosófica acerca da temática referente, no nosso caso alusiva a questões da ética. Suas especulações não são engessadas, muito pelo contrário, são flexíveis e representam uma forma diferente de pensar a mesma questão, senão em todas as suas obras, nas diferentes fases de seu pensamento.
Todavia, devemos ser fiel ao texto. Embora o presente texto seja explicitamente um comentário referente à ética na obra O nascimento da tragédia, muitas passagens e interpretações podem ser objetivadas numa ética nietzschiana geral, pois algumas ideias ali presentes aparentemente o acompanharão por toda sua trajetória literária, apesar de ser abordada de maneira diferente, o que torna quase impossível uma uniformidade concreta sobre a moralidade a partir de Nietzsche.
Assim sendo, Nietzsche, nesse texto, aparece como critico da moral ocidental moderna, pois essa moral estaria fundamentada em preceitos cristãos e numa concepção demasiada racionalista, reduzindo a vida a uma lógica inteligível que nega toda sua intensidade e amplitude; além do que essa concepção racional do mundo acaba por negar a vida tal como ela se apresenta: com prazeres, dores, mazelas, mistério e outras características “recalcadas” pela adaptação dessa moralidade decadente implantada na sociedade moderna pelos adeptos do que Nietzsche chamou de socratismo, desde filósofos, políticos, intelectuais/acadêmicos até quem deveria combater, por assim dizer, tal pensamento deturpador da vida, os ditos artistas.
Na obra O nascimento da tragédia Nietzsche aborda três ideias principais: 1) a questão da tragédia em si, como ela era entendida, de onde veio, quais seus aspectos mais singulares, em que sentido ela pode ser entendida como uma arte de afirmação da vida, enquanto síntese de um espirito apolínio e de um espirito dionisíaco, ou seja, de um pensamento harmonioso e inteligente em completa relação com um pensamento intenso e desmedido; 2) a questão da racionalização da arte, ou como uma estética inteligível tornou-se a concepção artística por excelência, elevando o entendimento e rebaixando o sentimento. Essa ideia parte do pressuposto que Sócrates seria o mentor e percursor dessa forma errônea e decadente de compreender a arte, porque, segundo Nietzsche, foi Sócrates quem primeiro concebeu a beleza como algo racional, onde apenas um pensamento concatenado e sistemático seria capaz de “contemplar” a beleza em si. Nietzsche rechaçava essa concepção evidentemente moral da arte. Para ele essa desmedida artística — a exaltação de Apolo perante Dionísio — levou ao aniquilamento da arte trágica, foi essa forma de pensar que ocasionou a perda da subjetividade não só na arte, mas em todas as manifestações do próprio pensamento; 3) a questão da análise do pensamento trágico como uma forma de compreensão da modernidade, reinterpretando está conforme algumas ideias referente a relação estética do trágico e sua derrocada a partir do pensamento socrático-platônico.
Além disso, a crítica de Nietzsche a sociedade moderna é comparativa com a sociedade grega na antiguidade; Nietzsche põe na balança os valores modernos em contraposição aos valores gregos, dizendo que estes são mais dignos que aqueles na medida em que afirmam a vida e buscam, através da arte, uma forma de aperfeiçoamento e superação própria, podendo assim encontrar sentido na vida sem necessariamente explica-la.
Nietzsche não entendia a vida como uma dimensão racional e moral em que tudo faz necessariamente sentido. Na concepção do filosofo, o mundo, a realidade tal como ela nos apresenta é uma faceta duma dimensão maior, a dimensão da vida, da existência em si mesma. Essa valorização da existência é o ponto de partida da ética nietzschiana, é o fundamento das críticas a moral ocidental, a partir dessa concepção valorativa da existência ele pensou uma moral mais produtiva no sentido de aproveitar a vida de forma real, imanente e intensa. Viver a vida de forma artística.
A moral de Nietzsche parece ser embasada numa concepção estética da vida em que a aparência e os fenômenos são de grande valor na cotidianidade, pois sua filosofia do trágico é uma demonstração de uma forma de viver em que a arte tem primazia a ciência, isto é, a forma racionalizada de entender as manifestações reais da existência; a arte como alternativa na vivencia, descartando a opção técnica de vivencia, que, para Nietzsche, não faz outra coisa senão objetivar a vida numa tentativa decadente e covarde de controlar os fenômenos existenciais. Interpretar a vida tecnicamente é o mesmo que limita-la, negar suas possibilidades, sejam elas agradáveis ou desprezíveis.
Pode-se dizer que a ética de Nietzsche é uma forma positiva de pensar o pessimismo gerado por uma ótica realista da vida, pois sua interpretação admite a realidade tal como ela se manifesta, ele não nega a vida. Nietzsche diz ser necessário uma autocrítica dos valores, numa tentativa de se desprender de pré-conceitos e dogmas gerados por uma moral estrangeira: o individuo que almeja ser independente e autônomo, alguém acima da superficialidade existencial, um filosofo, por assim dizer, necessita de uma constante reflexão de si mesmo, de seus ideais, valores, concepções já estabelecidas; numa palavra, deve-se em todos os aspectos buscar ser um espirito livre.