Sinopse: Ideologia é um terreno minado
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“Se há um termo em Psicologia Social que, apesar de amplamente empregado, possui também sentidos e conotações profundamente diversos, este termo é ideologia. É um terreno minado. Cada autor agrega ao termo alguma peculiaridade distinta.

Cada um pode entender ideologia como quiser. O importante é que diga o que está entendendo com o termo. No sentido que discutimos aqui ideologia tem uma dimensão negativa e pejorativa. Ela consiste num conjunto de modos e estratégias criados para enganar, manipular, iludir, tirar proveito dos outros. John B. Thompson, talvez o autor que melhor discute ideologia, a define como sendo o emprego (a prática) de formas simbólicas para criar e reproduzir relações de dominação (e) tomar ideologia como uma prática negativa abre espaço para se poder discutir as implicações éticas dos fenômenos, isto é, ela comporta uma dimensão que nos ajuda a ver se as coisas são boas ou ruins. Uma das estratégias (para criar ou reproduzir relações de dominação) é a que se costuma chamar de legitimação. Por exemplo, a revolução verde foi legitimada como sendo a que iria ‘matar a fome da humanidade’. O que se constatou, depois de algumas décadas, foi que ela introduziu novas técnicas de cultivo na agricultura que só serviram para transformar os padrões de vida e de consumo das populações pobres, enriquecendo a alguns e aumentando o número de pobres famintos.
Outro modo de operação da ideologia (...) é chamado de naturalização ou reificação. Com palavras bem simples, tal estratégia consiste em transformar o que é cultural em natural. Paulo Freire (em sua proposta de alfabetização de adultos) iniciava justamente com esta discussão, isto é, a diferença entre natureza e cultura, pois (é) exatamente nesta operação de naturalização que se criam oportunidades de mais enganar, manipular, dominar. A discussão de Freire era simples. Primeiro definia o que entendia por cultura: tudo o que o ser humano faz. E natureza: o que sempre esteve ali. Tomava um vaso de barro e perguntava: ‘Isso é natureza ou cultura?’ As pessoas respondiam: ‘Bem, quem fez o vaso foi a Severina... Se cultura é o que o ser humano faz, então o vaso é cultura’. Freire continuava: ‘E o barro?’ ‘O barro, respondiam eles, é algo que está ali, é só pegar... Então é natureza’. E o diálogo continuava: ‘E a prefeitura?’ Bem, aí as pessoas começavam a titubear. Se fosse o prédio da prefeitura, seria cultura, pois tinham sido eles que o tinham construído. Mas Freire continuava, provocando: ’ E o prefeito?’ A discussão ia esquentando. Alguns diziam que quem tinha decidido quem seria o prefeito tinha sido o Coronel Fulano. E ele era também um ser humano. O prefeito e a prefeitura eram, portanto, instituições culturais. Finalmente, vinha a pergunta crítica, desmistificadora, libertadora: ‘Então, se tanto o prefeito, como a prefeitura, eram cultura, pois cultura é aquilo que o ser humano faz, por que alguns conseguem ‘fazer’ o prefeito, e outros não?’ E a semente crítica da conscientização política começava a germinar dentro deles. Aos poucos eles iam se dando conta de que eles também poderiam contribuir na construção da sociedade e de suas instituições e que não era nem o destino, nem a vontade de Deus, que determinada pessoa fosse prefeito, mas interesses humanos (...) A estratégia de naturalização é, no fundo, uma das principais armas na manutenção de situações de dominação e acobertamento da realidade. (...) A estratégia de naturalização é também chamada de reificação, que é uma palavra que significa coisificação, pois em latim res é coisa. Essa estratégia funciona também de maneira inversa, quando, por exemplo, atribuímos qualidades humanas a fenômenos. Todos os dias ouvimos falar que ‘o mercado está de mau humor’, que a ‘bolsa está dando sinais de nervosismo’. Uma das coisas mais tristes é verificar que até mesmo as pessoas se reificam, isto é, acabam aceitando o que fizeram delas, passando a acreditar que não há mais alternativa, que não é possível nenhuma mudança: é a reificação da consciência, o estágio derradeiro da escravidão de uma pessoa.”
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Guareschi, Pedrinho; in Psicologia Social Crítica como prática de libertação; 5ª edição, EDIPUCRS, 2012, Porto Alegre. Páginas 73-80.