Ellilan
Há um velho provérbio das terras do Norte que roga: “Arte proveniente da alegria é enganação; arte proveniente da tristeza é refúgio”. Conquanto ache-o um tanto quanto duro, sou forçado a admitir que o sofrimento sempre inspirou diversas e fascinantes produções artísticas ao decorrer dos séculos. Se o mundo não proporciona consolo àquele que sofre, nada mais justo que buscá-lo na arte!
Sofrimento e nostalgia costumam andar lado a lado; sempre valendo-me de minhas próprias experiências, cheguei à conclusão que o sofrimento causado por saudades do passado é um dos mais dolorosos. Iniciando-se com a perda de nosso estado de graça, de nós surrupiado em prol de uma mera maçã, almejamos os tempos da “idade de ouro” nos quais tudo aparentava ser mais simples e a Honestidade era um atributo encorajado entre os homens – “o mundo envelhece, e envelhecendo entristece”, como Tasso viria tão lindamente a expor.
Sou, porém, uma pessoa simples: anseio apenas pelos tempos de minha infância, nos quais tudo parecia-me novidade e sonhar com o futuro trazia-me prazer, e não desencanto. Naquele tempo em que ser poeta era-me uma noção inconcebível, valia-me de minha imaginação para meu próprio entretenimento, divertindo-me com tudo aquilo que podia encontrar, dando asas ao pensamento e vivendo cada dia como se fosse um sonho. Exilar-se da realidade é muito mais fácil – e menos dolorido – quando se é criança.
Tendo eu crescido no último fin de siècle, minha infância foi marcada por jogos eletrônicos – uma promissora maravilha do mundo moderno. Nada causava-me maior deslumbramento que segurar o controle, manipular aquele aglomerado de pixels na tela e ouvir as repetitivas melodias sintetizadas, imaginando: “Haverá algo mais além daquilo que vejo programado? Como seria viver neste mundo? Em algum lugar do planeta existiriam fantásticos lugares semelhantes a estes?” E isto com simples jogos de 8 de 16 bits! Meu encanto só veio a aumentar à medida que passei para jogos posteriores, com gráficos cada vez mais realistas – a assim chamada “suspensão de descrença” fluía muito mais suavemente, e os benéficos efeitos de passar horas a fio jogando foram imprescindíveis ao meu processo criativo.
But alas! Envelheci e entristeci junto com o mundo. Há anos não tenho tempo ou vontade de entreter-me com jogos eletrônicos, por mais modernos e tecnologicamente avançados que hajam se tornado desde a época de minha infância. Adquiri o fardo de ser poeta – fardo este tão pesado quanto o de Atlas – e minha imaginação contaminou-se nas sujeiras da Descrença, e por mais que produza meus melhores trabalhos na maturidade, não há um dia no qual eu não sinta falta daquele tempo no qual imaginar mundos era um passatempo, e não um meio de subsistência, tendo que prostituir os poucos pensamentos nobres que me sobraram expostos às indignidades do vulgo.
Foi assim que desenvolveu-se uma de minhas maiores obsessões: o estudo da memória. Se houvesse cedido meus dotes à racionalidade da Ciência e não às fantasias da Poesia, gostaria de construir uma espécie de máquina que permitisse às pessoas repetirem seus momentos mais nostálgicos e queridos como na primeira vez que os vivenciaram – aproveitando também o ensejo para resgatar outras memórias antes que caíssem no esquecimento. Sempre andando na corda bamba do oblivion, a memória é o bem mais agridoce concedido à humanidade; tanto lembrar-se quanto esquecer-se contêm em si a dor e o prazer.
Numa desesperada tentativa de replicar ao menos as emoções que perdi, voltei-me à vaporwave (como já esclareci num ensaio anterior sobre Chuck Person) e à banda Sun Devoured Earth, da distante e nebulosa Letônia, cuja sonoridade, fazendo jus ao país de origem, é envolta na nebulosa aura de algo distante. Muitas vezes com títulos bastante deprimentes (“I’m Bored of Living” é meu preferido), as melodias são penetrantes, com vocais abafados por ecos; ou uma memória feliz envolta em camadas de tristeza, ou algo triste alfinetando a consciência do ouvinte. Quase todos os álbuns da banda oferecem mais do mesmo, com pouca variação – o único que se destaca dos demais é “Ellilan”, influenciado por música eletrônica.
Em verdade, “Ellilan” é descrito como a “trilha sonora de um jogo eletrônico imaginário” – conquanto o enredo de tal jogo nos é vedado saber, as faixas deixam um fio narrativo mais ou menos subentendido. Há temas para lutas com chefes, fases, cutscenes – todas ali, esperando que o ouvinte preencha as lacunas com sua imaginação e crie seu próprio jogo particular. Conseguindo unir com maestria diferentes estilos de trilhas sonoras de jogos, passando por vários consoles, gêneros e bits, cada faixa proporciona uma viagem no tempo, trazendo à lembrança algum jogo que poderia ter sido querido ao ouvinte.
Por ora, “Ellilan” e seu mundo vêm sendo bons substitutos para a experiência de imergir-me num jogo eletrônico, e talvez o único momento de genuína felicidade que sinto atualmente é quando suas notas transportam-me aos despreocupados tempos de minha meninice. Muito provavelmente o cérebro por trás do Sun Devoured Earth não teria criado um álbum tão especial se não houvesse sofrido, providenciando refúgio a si próprio e a várias outras pessoas como eu; meus jogos já não existem, mas as memórias da diversão que tive com eles perdurarão e me trarão refúgio, embelezando meu sofrimento com Arte e Imaginação e recordando-me com certas pontadas de melancolia que “quem passou pela vida e não sofreu foi espectro de homem […] só passou pela vida, não viveu”.
(São Carlos, 12 de agosto de 2021)