Wish

Juntemo-nos mais uma vez à minha roda, leitor e leitora, para ouvirem sobre outra página de meu passado – outra memória resgatada de profundezas imperscrutáveis, de um tempo em que a Alegria ainda se avistava em meus horizontes.

Minha carreira de escritor iniciou-se simultaneamente com minha exposição à literatura ultrarromântica e bandas de pós-punk e rock gótico – o que não é uma informação suscetível de espanto por parte das grandes massas depois de doze anos fazendo a mesma coisa. No entanto, em retrospecto, isto talvez jamais teria acontecido, e hoje quem sabe estaria fazendo alguma outra coisa diferente, se não fosse pela benigna influência de uma velha amiga… Por mais que hoje estejamos separados, devido à impiedade de meu Destino que não me permite guardar aquilo que seja bom por muito tempo, tendo eu que contemplar os resquícios de minha juventude se desfazendo ano após ano, devo minha gratidão à minha amiga Thaís por fazer de mim o que sou hoje – ou, pelo menos, ter me ajudado a construir uma parte tão essencial de mim.

À época, eu beirava os 13 anos enquanto ela já tinha vinte e poucos – possuía um conhecimento incomparável, sabia falar alemão e, tendo frequentado inúmeros pontos culturais de interesse da grandiosa São Paulo num tempo em que nem havia eu nascido, me contava algumas histórias interessantes de sua adolescência. Numa emulação enternecedora de Rousseau e da Sra. de Warens, chamávamo-nos de “mãe” e “filho”, e até que nos perdêssemos um do outro de fato o mais perto que tive de uma mãe carinhosa foi ela. Sob sua influência fui apresentado a Bauhaus, Siouxsie, Sisters of Mercy e Cure, que permaneço ouvindo hoje em dia, mas é pela última que tive maior carinho por, ironicamente, ter sido a primeira que conheci, e também devido ao modo pelo qual me foi apresentada.

Guardo, com muito afeto, em meio a tantos outros souvenirs do passado, a primeira carta que dela recebi, numa bonita folha preta de papel, na qual cita versos da canção “To Wish Impossible Things”. Foi esta a primeira canção que ouvi e, por consequência, o primeiro álbum que me apresentou ao Cure foi “Wish”, de 1992. Se comparado a álbuns anteriores da banda, principalmente o famosíssimo “Disintegration” e outro que é um de meus favoritos, “Kiss me, kiss me, kiss me”, não conta entre os mais memoráveis, mas ainda hoje é para ele que sigo retornando quando quero recordar-me daquelas tardes em que aguardava ansioso pelas cartas de minha mãe (e de todas as minhas outras correspondentes então), ouvindo a tantas bandas novas e observando um mundo tão bonito e promissor se desvendar perante mim.

Atualmente, é assombroso constatar o quanto “To Wish Impossible Things” tornou-se uma letra quase que profética a respeito de minha existência; o quanto não perdi em doze anos? Quantos de meus desejos não se mirraram, seus últimos suspiros coagulando-se em vapores que embotaram meu céu e enregelaram meu sol? Uma coisa que me traz algum pequeno alento, no entanto, é saber que tenho minhas lembranças, e posso revisitá-las sempre que quiser, e cada uma de minhas produções carrega um pedacinho de algo ou alguém que, um dia, me foi de importância.

Como andará minha mamãe hoje em dia? Não sei – mas também não sei dizer se gostaria de sabê-lo. Me é preferível lembrar-me dela como era, e não como hoje deve ser. Ainda assim, se não fosse por ela ou tantos outros e outras que passaram por minha vida, atualmente não teria tamanho acervo literário em meu nome, nem teria lido o que li, conhecido a quem conheci e sido o que sou, tanto no que trouxe o bem quanto no que trouxe o mal.

E, antes tarde do que nunca, só posso dizer à minha mamãe Thaís e a todos os outros que me acompanharam por tanto tempo: muito, muito obrigado! Um dia, talvez, poderei retribuir-lhes à altura de sua amizade e esforços.

(São Carlos, 5 de março de 2022)

Galaktion Eshmakishvili
Enviado por Galaktion Eshmakishvili em 26/11/2014
Reeditado em 05/03/2022
Código do texto: T5049320
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