A poesia de outrora e a prosa de agora nas crônicas de João Caetano Canela em Alguma Literatura
Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
(Casimiro de Abreu)
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
(Casimiro de Abreu)
A vida e suas esquinas, muitas das quais se encontram na memória, passíveis à visitação. Outras, porém, nos são apresentadas ali, num dobrar de ruas, ou mesmo em nossa casa. Eis que encontramos pessoas e experimentamos momentos inesquecíveis. Por isso digno de serem grafados com tinta para que se perpetuem para sempre, não apenas numa lembrança individual, mas partilhada por todos. Assim são as crônicas de João Caetano Canela, marcadamente memorialísticas.
Em seus textos, visualizamos um homem saudosista, telúrico, crítico, ao mesmo tempo racional e espirituoso, assinalado pela comoção e superstição. Homem humano. Sua pena serve de ponte que liga o passado ao presente. A velha Montes Claros dos casarões, da vida pacata à sombra das árvores, se depara com a nova Montes Claros dos apartamentos, da vida agitada à quentura das marquises.
Com a pretensão de modéstia, o título Alguma Literatura retoma imediatamente a primeira obra de Carlos Drummond de Andrade, Alguma poesia (1930). Tal qual o poeta de Itabira, o escritor montes-clarense deixou que os leitores dissessem a magna literatura que produziu. Sua indicação para o Processo Seletivo da Unimontes de 2015 comprova a qualidade de seu trabalho. Sobre isso, o próprio João Caetano (como gosta de ser chamado) confidenciou em uma entrevista: “É um reconhecimento que obtenho. Sinto-me premiadíssimo, laureado. Nunca esperei que fosse construir semelhante reputação literária e alcançar essas alturas. Se eu posso fazer uma comparação, digo que recebi o Prêmio Jabuti de minha Terra”.[1]
Sua linguagem é pura poesia. O cronista é um intelectual que recorre ao seu vasto glossário para nos proporcionar uma prosa adulta e muito bem escrita. O padrão culto da língua, carregada de termos da erudição, comprova o seu compromisso com o idioma português. Palavras pouco usuais no dia a dia ganham capricho e leveza: “denodo” (p. 72)[2], “loquacidade” (p. 73), “saburrosa” (p. 74), “imbróglio” (p. 87), “notívago” (p. 149). Construções sintáticas pouco utilizadas como este anacoluto: “uma senhora que me lê uma queixa à minha pessoa” (p. 73) ratificam o conhecimento dos recursos estéticos da língua. E não são apenas em crônicas mais “sérias” que o autor utiliza esse vocabulário. Na segunda crônica do livro, “A lavadeira da prainha”, lemos o trecho: “afastou uma perna da outra e, de pé, realizou uma micção ruidosa e despudorada, expelindo um grosso e vigoroso jorro de urina” (p. 32-33). Nesse exemplo, vemos a escrita de um homem das letras, maduro, artífice da língua portuguesa. Quem costuma usar o substantivo “micção”? Palavra bonita, espécie de eufemismo de “mijar”. Os adjetivos usados (ruidosa, despudorada, vigoroso) nesse trecho, em se tratando de uma descrição de um mijo de uma moça, embelezam o ato.
Mas seus textos também nos surpreendem com expressões coloquiais e do universo regional como no período: “por tudo que teve de difícil e constrangedor pra nós, a ponto de a gente nunca mais ter tocado no assunto” (p. 52); ou neste outro exemplo: “pra acabar dentro do rio – tibum!” (p. 53).
O bom humor é outra marca de suas crônicas. Sua escrita leve é, por vezes, marcada por trechos que entretêm, formulando piadas. Na crônica “Trinta e um: amar o mar”, ao falar de baleias na praia de Ipanema, o autor brinca: “Ora, três senhoras, obesas, repoltreadas em cadeiras de praia com suas adiposidades à mostra, podem perfeitamente ser tidas como baleias” (p. 126).
Retomando as heranças dos escritores do século XIX, o autor se dirige, às vezes, explicitamente ao leitor, buscando uma cumplicidade para seus pensamentos: “Quer falar algo que um diabo não suporta ouvir, leitor? Pois então fale a ele de tranquilidade de vida” (p. 198).
A maioria de seus textos é narrada em primeira pessoa. Desse modo, ratifica a caráter biográfico das crônicas. De fato, seus textos são essencialmente experiências de vida. Assim, a verossimilhança lhe é um atributo caro. Espaços mencionados em seus textos são reais, bem como muitas histórias contadas. É claro que a literatura proporciona a ficcionalidade de fatos, recriando realidades e potencializando suas “verdades”. [...]
A vida é o tema central das crônicas de João Caetano Canela. Não lemos, portanto alguma literatura, lemos várias literaturas, pois cada texto nos mostra um pouquinho da sensibilidade artística de um homem, assinalado pelo transcurso do tempo. E com ele nos identificamos. Semeando as palavras, alimentando-as com nossos mais sinceros sentimentos, colheremos vidas. Histórias que nos serão memoráveis daqui alguns anos. Histórias que também registramos se não nas páginas de livros, mas nas páginas da memória. Para então, quem sabe, escrever Alguma literatura.
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