Âmesœurs

Um de meus filmes preferidos durante minha mocidade (e do qual ainda hoje gosto muito, apesar de, em meu estado atual, mais entristecer-me do que alegrar-me) era “O fabuloso destino de Amélie Poulain”.

Em verdade, acho difícil até mesmo uma pessoa muito mais infeliz do que eu não gostar deste filme se assisti-lo; por um breve momento, não há como não nos deliciarmos com as aventuras da doce personagem titular numa idílica França do final dos anos 1990. Mas uma parte minha, uma que, sem mais saber como alegrar-se consigo mesma, seja com a felicidade alheia, às vezes pergunta-se: “Será que Amélie teve um epílogo feliz? 25 anos depois, numa França tão diferente, manteria ainda seu otimismo juvenil?” Não ousaria, no entanto, deturpar um filme tão belo propondo-me a roteirizar uma continuação – mas posso compartilhar um inofensivo pensamento que, de uns tempos para cá, vem dardejando por meu cérebro: fosse “Amélie” um filme mais gótico, sua trilha sonora seria o álbum “Âmesœurs”, da banda de mesmo nome, lançado em 2009.

Único álbum de estúdio da banda francesa, que conta com a participação de grandes nomes da cena musical do país como Neige (Alcest), Fursy Teyssier (Les Discrets) e Audrey Sylvain (Peste Noire), sua proposta é cantar a desilusão humana e a decadência urbana de um modo poético e por vezes visceral – o que, por si só, já é uma versão muito mais “dark” da premissa de “Amélie”. No lugar de caminharmos por uma França colorida e fantástica, tingida pela Nostalgia, somos convidados a explorar uma metrópole cinza, envolta em névoa e abundante em opressivos arranha-céus – como sua própria capa já evidencia.

Grande parte das letras, até onde pôde uma tradução auxiliar-me, discorre sobre a solidão que muitas vezes leva ao escapismo da realidade – outro tema sobre o qual se alicerça a premissa de “Amélie”. Solidão, saudade e desejo de fuga, somados com descrições por muitas vezes poéticas de um ambiente desumano, fornecem um realismo quase tão mágico, mas muito mais mórbido, que o do filme – vide, por exemplo, “Les Ruches malades” e “La Reine trayeuse”, que discorrem sobre prostituição. “Faux-semblants” é uma belíssima descrição de como é viver a sós, ansiando pela presença de alguém, e “Video Girl” é um relato de extrema profundidade e poesia sobre a idealização de um amor platônico (talvez por uma celebridade, coisa ainda mais ubíqua nesta atual década). Como, no entanto, nem sempre tudo é trevas, a faixa-título encerra minha análise da mesma forma que o filme se encerra: com uma bela, e concreta, promessa de amor.

Pode ser que meu pensamento esteja completamente equivocado e eu esteja apenas, como sempre, enchendo minha cabeça de ideias sem qualquer praticidade, mas crendo eu que tudo tenha sempre um lado claro e um lado escuro, talvez meus palpites façam mais sentido se considerados sob a ótica do yin e do yang, Ariel e Caliban – mas uma coisa com a qual creio que todos nós podemos concordar é que, à sua maneira, tanto o filme quanto o álbum transmitem a mesma lição de moral: vivemos em tempos difíceis para sonhadores. E ambos também à sua maneira consolam aos sonhadores que necessitam de algo profundo que lhes fale à alma.

(São Carlos, 2 de julho de 2022)

Galaktion Eshmakishvili
Enviado por Galaktion Eshmakishvili em 05/09/2014
Reeditado em 02/07/2022
Código do texto: T4950470
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