Crash Twinsanity
Existem em minha vida alguns pequenos mistérios sobre os quais gosto de perder meu sono ocasionalmente – e todos têm a ver com os projetos fracassados e inacabados da humanidade.
Os finais da “Eneida”, da “Farsália”, do “Satíricon” e do “Faerie Queene”; o quarto livro da série “Gormenghast”, de Mervyn Peake (e quaisquer outros que poderia ter vindo a escrever não fosse por sua infeliz doença mental); o terceiro filme da série “Batman” de Tim Burton, abortado em prol da patifaria que foram os filmes de Joel Schumacher, e sua versão igualmente abortada do Super-Homem; e não posso esquecer-me de incluir o magnífico monumento nunca erigido, a versão de “Duna” de Alejandro Jodorowsky, na decepcionante lista de coisas que ninguém nunca haverá de contemplar por terem se perdido em meio às galerias da História pelos mais variados e desafortunados motivos concebíveis.
Há, decerto, a possibilidade de que tais obras, se de fato viessem a lume, não fossem tão boas como se encontram em seu estado atual – mas talvez a graça se encontre mais na imaginação; ponderar a respeito do final de uma obra inacabada, ou uma obra que sofreu diversas alterações (bem-vindas ou não) antes de chegar a seu estágio final, é deveras divertido, e um tanto quanto romântico. Quem, porém, imaginaria que um jogo eletrônico da série “Crash Bandicoot” viria a fazer parte desta lista, fornecendo tantas especulações por anos…!
Sim! Uma série de jogos a respeito de um marsupial laranja antropomórfico que luta contra os ataques de um cientista maluco, que alcançou o ápice de sua popularidade entre os anos 1990 e 2000, teria um de seus installments envolto em mistério – é ele o infame “Crash Twinsanity”, de 2004; e de todos os jogos da série pós-anos 1990, é o que mais se destaca em termos estéticos. (Vale ressaltar, foi este o jogo que motivou-me a comprar um PlayStation 2 há tantos anos. Feliz escolha!)
No enredo do jogo, o protagonista e o antagonista devem juntar forças relutantemente a fim de impedirem que um mal maior destrua-lhes o lar; premissa esta que sempre apreciei em formas de mídia, pois pode fornecer situações muito cômicas se bem executada. Ao decorrer do jogo, o cartunesco marsupial e seu companheiro de cabeça avantajada se envolvem em divertidas situações, realçadas ainda mais pelos diálogos hilários, personagens bem-feitos e carismáticos e trilha sonora – que, curiosamente, foi composta por um conjunto a cappella e, de todos os pontos do jogo, é este o mais fascinante. A história, porém, vai muito além disto.
Até onde é sabido, o desenvolvimento de “Crash Twinsanity” foi longo e dificultoso; vários conceitos foram descartados e, com o jogo cada vez mais perto de extrapolar o prazo, foi concluído às pressas – o que resultou em sua aparência “inacabada”. As montanhas de conteúdo deletado são surpreendentes e poderiam ter rendido uns dois ou três jogos diferentes. Como poderia ter sido…?
É visível que muito carinho e dedicação foram postos na criação deste jogo – e mesmo que não tenha saído do jeito que originalmente o visualizaram, permanece sendo discutido e adorado exatamente por isto. Quem não gosta de um mistério, afinal? Por mais “tristes que sejam as coisas que ficam abandonadas”, ao menos alimentarão as imaginações das pessoas, e quem sabe levarão algum idealista a concluí-las ou reformulá-las.
(São Carlos, 6 de dezembro de 2021)