Skylab I–X

Não posso afirmar o suficiente o quanto minha enorme devoção por Rogério Skylab nada tem de irônico.

Devido à personalidade e ao estilo incomuns deste cantor, realmente não se admira que certos “fãs” apenas o enxerguem como um maluco divertido e escatológico que, meramente por shock value, gosta de lançar um palavrão aqui e ali; e confesso que a princípio foi esta suposição que me atraiu a seu trabalho, pois gosto muito de uma boa e velha baboseira. Ouvindo, porém, a um de seus álbuns do começo ao fim pela primeira vez, percebi que, de fato, Skylab é muito mais do que um mero maluco boca-suja.

Por mais que a escatologia de fato esteja presente em seus trabalhos em maior ou menor grau, não é um grande foco daquilo que Skylab quer passar: suas músicas mais desconhecidas ao público são de um lirismo melancólico, quase que macabro, e o suposto “humor” que tanto querem lhe atribuir, quando existe, é um humor machadiano, que mais faz chorar do que rir, tamanha sua ironia e sutileza mordazes. Sua discografia é vastíssima, já contando com 24 álbuns de estúdio, todos quase sempre divididos em séries – o que pode ser um problema para quem quiser estudar de maneira detalhada o estilo do cantor. É por isto que minha recomendação a qualquer principiante é escutar com o máximo de atenção sua primeira série de álbuns, “Skylab”, em dez volumes.

É em seu primeiro trabalho de importância que nos deparamos com a potência crua e não polida de sua criatividade – em estágio fetal, as ideias de Skylab possuem mais pungência antes de sua maturação – visivelmente atingida em sua última série, a “Trilogia do Cosmos”, onde seus 30 anos de carreira se amalgamam envelhecidos tal qual vinho. Assim sendo, para ao menos tentar fazer com que Skylab não seja enxergado única e exclusivamente como um meme de Internet, resolvi redigir este pequeno guia de sua série autointitulada (excetuando os álbuns “Skylab II” e “IX”, por serem lançamentos ao vivo), com base em minhas impressões pessoais, para aqueles que não sabem por onde começar.

O inaugurador da série, “Skylab”, de 1999, é uma evolução técnica e lírica comparado a seu predecessor “Fora da grei”. Equilibrando satisfatoriamente morbidez com delicadeza, é um álbum melódico e superabundante em teclados, mas com as letras mais sangrentas que Skylab já compôs, entre elas “Motosserra”, “Naquela Noite”, “Matadouro de Almas” e seu grande clássico, “Matador de Passarinho”.

“Skylab III” já segue por uma direção mais pesada, voltada ao rock e carregada de guitarra e baixo. As letras adotam uma postura mais crítica, como em “Lágrimas de Sangue” e “Dólar”, mas há outras embasadas na repetição de ideias e conceitos como “Acorda, Siva Maria”, “Inferno” e “É Tudo Falso”, construída ao redor de vários samples de outras canções. Esta última canção em particular demonstra a forte influência de Damião Experiença, que permeia todo o álbum – vale ressaltar que o álbum foi dedicado a Damião.

“Skylab IV” tem um sabor urbano – quando o ouço imagino uma estereotípica grande cidade cheia de prédios, carros e fumaça. Talvez se dê ao fato de ser um álbum mais ácido e frenético, como é visível em faixas como “Um Carro”, “Música para Paralítico”, “O Meu Pau Fica Duro” e o monólogo em spoken word “Puta”; em particular, “Desarmônica” resume a premissa do álbum e grande parte da persona de Skylab: a louca vida de um louco observador na cidade, na aurora do século XXI.

Considero “Skylab V” e seu sucessor “VI” como irmãos, pois os acho similares em termos líricos e estéticos: “Skylab V” é o mais velho, e assim sendo é mais bem-acabado e o ápice criativo de toda a série. Tudo aquilo que Skylab quis ser culmina neste álbum, que é um de seus melhores – se não o melhor. Seu samba rock MPB atinge o cume de sua qualidade aqui, e continua imitado pelo irmão caçula “Skylab VI”; este último, no entanto, apesar de também ser um álbum estelar, mais parece uma repetição do anterior.

“Skylab VII” é uma versão ainda mais mórbida, pesada e agressiva de “Skylab I”, voltando a referenciar temas negros como doenças e assassinato. É um álbum minimalista e repetitivo, que não poupa as guitarras distorcidas – é meu menos preferido, por me recordar de algumas coisas ruins.

Por último, “Skylab VIII” e “X” já demonstram que o fim está próximo, sendo os dois álbuns mais “bem-comportados” e introspectivos da série. Conquanto não sejam os mais bem lembrados, possuem algumas verdadeiras pérolas escondidas – o primeiro tem “Eu Preciso de Você Comigo”, que é, estranhamente, uma das composições mais tradicionalmente românticas do cantor, e o último tem “O Pensamento Voa”, que é uma das letras mais bonitas que alguém já escreveu. Curiosamente, estes dois álbuns acabariam por servir de presságio àquilo que seria desenvolvido na “Trilogia do Cu” – mas esta é outra história.

Enfim, pouco há a se dizer em se tratando de Skylab: o prazer está em constatar por si próprio, desbravando as várias camadas de sua música e vivenciando em tempo real a criatividade tortuosa deste gênio que vai muito além de cu, boceta e afins.

(São Carlos, 23 de dezembro de 2022)

Galaktion Eshmakishvili
Enviado por Galaktion Eshmakishvili em 06/03/2014
Reeditado em 23/12/2022
Código do texto: T4717692
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