Duckman
Há alguns meses (em junho, para aqueles sempre a prezar pela exatidão das datas) fui surpreendido com uma notícia tristíssima: falecera Everett Peck, cartunista americano responsável por criar um dos melhores desenhos animados adultos já feitos, “Duckman”. Somente agora, no entanto, tive a oportunidade de dirigir algumas palavras a respeito desta série merecidamente aclamada mas tão pouco conhecida.
Nasci no mesmo ano da estreia de “Duckman”, e assisti a todos os seus 70 episódios pela primeira vez em 2017. Alguns dias seguintes à morte de Peck os reassisti, e em ambas as vezes senti-me chocado com como um desenho criado há quase 30 anos continua com uma atualidade assustadora em 2022 – but alas! Poucas são as pessoas que o conhecem, ou que dele se lembram. Seja porque, à época, “Os Simpsons” já se encontrava no auge de sua popularidade, ou porque, exibido por apenas quatro anos, vingou apenas quatro temporadas, “Duckman” é geralmente recordado como uma mera nota de rodapé da programação dos anos 90, mas comparado aos “Simpsons” e até mesmo a seus sucessores, seus roteiros eram muito mais brilhantemente escritos, com uma sátira mordaz a tudo e todos mas sem descambar a profanidades e grosseria.
A série explora as peripécias do titular Eric Duckman – um pato antropomórfico que trabalha como investigador particular. Duckman é acérbico, misantrópico e dado aos prazeres da carne um tanto quanto em demasia – também é impulsivo e grande parte do humor da série deriva de sua tendência a não pensar em seus atos. Viúvo, pois sua esposa faleceu antes do início da série, divide o lar com a cunhada, que o odeia, e com os filhos – os inteligentes gêmeos siameses Charles e Mambo, e o ingênuo Ajax. Duckman não é respeitado pelos familiares devido a seu comportamento irresponsável, e um de seus únicos amigos é o parceiro de trabalho Cornfed – muito mais inteligente e competente do que ele.
Como já foi dito, grande parte do humor da série deriva da visão de mundo niilista e amarga de Duckman, que frequentemente faz com que tenha problemas com o todo da sociedade. A grande maioria de suas críticas, no entanto, possui fundamento apesar da linguagem colorida com que se exprime; como gosto de atiçar a curiosidade do leitor, não irei revelar grandes detalhes sobre o enredo – mas elenco meus episódios favoritos e que seguem atuais ainda hoje. “A Room with a Bellevue”, que é para mim o mais emblemático, contém uma forte crítica aos rumos da sociedade capitalista movida ao trabalho assalariado; “America the Beautiful” é uma alegoria sobre o papel dos EUA na hegemonia mundial; “Forbidden Fruit” preveu o famigerado movimento Me Too, e “Dammit, Hollywood” a fixação da cultura pop em filmes à la Michael Bay. A lição geral de todos os episódios, porém, é que o humor foi feito para chocar, entreter e fazer pensar ao mesmo tempo, não devendo nunca se entregar às mazelas do politicamente correto.
Rindo mesmo da própria audiência, o derradeiro episódio da série termina com um agoniante cliffhanger que permanece sem resposta há 25 anos, e que também não direi qual é para provocar ainda mais meu leitor. Com a morte de Peck acho ínfimas as possibilidades de tal resposta, e ainda mais ínfimas as chances de termos um novo “Duckman” para o século XXI, tão precisado de um – mas talvez seja melhor assim. Os 70 episódios de “Duckman” permanecem, tentando há quase 30 anos nos alertar sobre aquilo que nos tornaríamos, ao mesmo tempo que nos ensina a rir de nós mesmos e tudo o mais. (E quem diria que eu próprio acabaria aprendendo tão bem tais lições que me tornei eu mesmo um Duckman…)
(São Carlos, 21 de outubro de 2022)