Chuck Person
Sendo eu um dos inúmeros filhos engendrados pelo último e tão conturbado fin de siècle, lembro-me ainda de meu infantil entusiasmo ante aquilo que conseguia discernir dos progressos científicos e tecnológicos da humanidade.
Aquele romântico e um tanto quanto ingênuo idealismo que o final da década de 1980 semeara em nossos corações desabrochou belamente com o Sol da década que a sucedeu: a ameaça comunista dos “vermelhos” estava finalmente destruída após anos de uma guerra tácita, novos computadores e outros aparatos eletrônicos prometiam confortos inimagináveis às próximas gerações e todo o globo parecia festejar o triunfo supremo do capitalismo ianque que haveria de coroar a aurora da nova década de 2000 que estava a caminho, liderando num espalhafatoso cortejo o novo século e o novo milênio.
E assim chegamos num solavanco a este vigésimo primeiro século que tanto nos prometeu e quase nada cumpriu; o capitalismo tornou-se um gigante balofo e indolente às beiras de implodir, as luzes trazidas pelo alvorecer gradualmente se apagaram uma a uma, e a portentosa tecnologia da qual a humanidade passou a gabar-se ad nauseam como sua única conquista se degenerou em algo tão intrusivo que sou forçado a acreditar num adágio de uma de minhas antigas tutoras de meus tempos no Liceu: “Os computadores foram inventados para solucionar problemas que até então não tínhamos.”
Influenciado por tais acontecimentos, como sói ocorrer desde tempos imemoriais, o imaginário coletivo volta-se a uma “idade áurea” passada, nutrindo nostalgia por um estado de graça perdido – como nosso pai Adão almejou voltar ao Éden, nós igualmente almejamos voltar àqueles tempos onde tudo parecia luzir com sonhos e esperanças alimentados pela apoteose do capitalismo.
Odiado por uns e aclamado por outros em graus variáveis de sinceridade, o movimento vaporwave, cuja popularidade atingiu seu ápice em meados da última década antes de tornar-se uma paródia de si mesmo (como é o costume acontecer com qualquer movimento contracultural), iniciou-se com o objetivo de recriar audiovisualmente esta sensação de nostalgia por períodos passados de um modo onírico e hipnagógico. Valendo-se de repetições, alterações bruscas de timbre e referências a tecnologia obsoleta, escutar uma canção de vaporwave é uma experiência comparável a seu ouvinte ter uma sonda perscrutando as profundezas mais obscuras de seu subconsciente, buscando memórias em avançado estado de decomposição – quase tão esquecidas quanto os apetrechos eletrônicos constantemente aludidos na iconografia do movimento.
O primeiro e mais emblemático álbum da vaporwave é o volume um das “Eccojams” de um certo Chuck Person, lançado em 2010. Desde o momento em que o seguramos em mãos somos envoltos por uma aura de mistério que exala de seu encarte – uma colagem feita com fragmentos de ilustrações do jogo eletrônico Ecco the Dolphin; porém, quaisquer conexões e semelhanças entre o jogo e o álbum se encerram aqui – e perpassa pela críptica lista de faixas: as Eccojams são divididas em duas partes, a primeira indo de “A1” a “A8”, e a segunda de “B1” a “B7”.
O álbum é musicalmente típico do movimento ao qual pertence, e viria a influenciar vários outros que o sucederiam. O diferencial das Eccojams, entretanto, está no modo em que Person deforma e manipula canções conhecidas de bandas e artistas famosos para dar-lhes outros significados e interpretações, por vezes perturbadores e inquietantes.
Citarei minhas faixas preferidas como exemplo, porém tingidas de minha própria interpretação pessoal. “A2” transforma “Only Over You” do grupo Fleetwood Mac num lamento perante um fugidio “angel”; “A7” enumera os Quatro Cavaleiros do Apocalipse numa repetição constante, que mais se assemelha a um mantra, de quatro versos de “The Four Horsemen”; e “B4”, que consiste em pouco mais de dois minutos do eco de duas palavras (“Nobody here…”, na voz de Chris de Burgh), remete ao vácuo existente em todas as coisas – quase que uma paráfrase da grande máxima do sábio rei, “Vanitas vanitatum, omnia vanitas”.
Encerrando com um último exemplo, que julgo ser o mais representativo (não só do álbum como de todo o ideal da vaporwave), elenco a faixa “A3”, separada em dois movimentos: o primeiro repete o refrão da canção de JoJo (“Be real / It doesn’t matter anyway / You know it’s just a little too late”), e o segundo ecoa, quase como num sonho, “Castles in the Sky” de Ian Van Dahl. Um convida o ouvinte a tentar manter-se “verdadeiro” ante a crescente artificialidade do modo de viver humano, e o outro o incentiva a manter seus sonhos populando o metafórico “castelo no céu” supracitado. Lembre-se com carinho dos tempos passados e desbrave o futuro do melhor modo que puder – é nesta máxima que toda a raison d’être da vaporwave pode ser contida.
Quer se ame, quer se odeie o movimento, que pode parecer demasiado arcano aos não iniciados, não se pode negar que a vaporwave cumpre bem o seu papel de encapsular a nostalgia pelo passado e uma esperança cautelosa pelo futuro sob camadas de provocações hipnagógicas e uma estética retrofuturista. Por mais que no presente momento ela esteja adormecida, não duvido que acordará completamente revigorada ao próximo fin de siècle, e só posso me perguntar quais canções do presente século atiçarão a nostalgia (e a anemoia, quem sabe) do próximo.
Onze anos se passaram, e até o presente momento Person não lançou um segundo volume das Eccojams. Talvez esta enigmática figura não seja uma pessoa propriamente dita, e sim um abstrato que surge para arquivar e condensar a nostalgia coletiva de um certo período de tempo em canções e reverberações. Ao contrário de Edgar Poe, não sou uma pessoa muito politizada, então não me importo com quem será o presidente em 2045 – mas se alguém puder me avisar quem será o Chuck Person de 2110, ficaria eternamente grato.
(São Carlos, 11 de abril de 2021)