Grey skies and electric light
Por algum capricho do destino, ou devido à influência de um aziago astro que veio a amargar o meu nascimento (como querem crer alguns), passei boa parte de minha existência repetindo o mantra: “A vida dói”.
E como não haveria de doer? Alguns parecem senti-lo menos que outros – mas ninguém vem ao mundo de livre e espontânea vontade. Um demiurgo cruel lança-nos à Terra sem que o peçamos, e não há um único ser humano que não seja forçado a passar por uma série de percalços a fim de garantir sua subsistência, só para ser retribuído com a morte, que invalida grande parte de suas conquistas terrenas. Existir não passa de uma sucessão de fracassos e alguns ocasionais sucessos – e por muito tempo acreditava que tais sucessos não bastavam para diluir a agonia dos fracassos. A vida dói – irremediavelmente. E várias vezes pude constatá-lo por conta própria.
Entretanto, certas verdades absolutas não são de todo absolutas, e apenas aguardam por um fato que venha a contradizê-las; graças a uma agradável catarse que a banda canadense Woods of Ypres veio a proporcionar-me, pude mudar meu raciocínio para “A vida de fato dói, mas possui seus momentos de beleza que devem ser admirados quando surgem”. Aqueles que já conhecem tal banda de antemão devem estar familiarizados com a temática lúgubre de suas canções, e mais ainda com a tragédia que veio a ceifar precocemente a vida do vocalista David Gold – mas tamanho infortúnio veio a trazer uma beleza sem par ao último álbum lançado por eles, “Grey Skies and Electric Light”, sobre o qual haverei de discorrer presentemente.
A começar pelo título, é um álbum que tenta invocar os encantos e as decepções da vida moderna nestas metrópoles do século XXI – encantos e decepções estes aos quais não estou alheio, tendo visto em primeira mão as decadentes formosuras das sœurs São Paulo e Kishinev. A atmosfera que a sonoridade tenta transmitir replica o dia a dia apressado e deprimente numa plúmbea cidade, com um ocasional glimpse de algo belo, que haveria de passar despercebido aos olhos de quem preocupa-se apenas com o que é cinza.
As canções em si, longe de serem totalmente otimistas, não são de todo melancólicas: claro que há “Modern-Life Architecture” e sua narrativa de um plano constantemente demolido pelo fato da vida ser dura, mas “Death Is Not an Exit” e “Career Suicide (Is Not Real Suicide)” oferecem um contraponto deveras motivacional.
A primeira exorta o leitor a respeitar seu corpo durante sua passagem pela Terra, já que não existe um pós-vida e a morte é só uma chama que se apaga – não passamos de um punhado de átomos zanzando pelo cosmo a esmo até que o pó nos chame de volta. Mas em quê isto nos impede de fazermos nossos anos valerem a pena do melhor modo possível?
A segunda contém, sem sombra de dúvidas, uma das maiores lições à humanidade que alguém poderia dar: só porque nossos sonhos morrem, não quer dizer que haveremos de seguir com eles. A vida não se baseia apenas na busca desenfreada por sucesso – tudo, no final, converge à morte, mas até que ela venha, por que não passarmos mais tempo apreciando a existência em si (mesmo com todas as suas mazelas) em vez de chorar por tudo aquilo que não dá certo? “Los sueños, sueños son” – quando um sonho morre, sempre haverá outro para substitui-lo. Quantos sonhos eu mesmo não sepultei, suas lápides ladeando a estrada da literatura que há mais de uma década venho trilhando, esfalfado!
O fato de ser um álbum lançado postumamente contribui ainda mais ao efeito da mensagem da efemeridade da vida – sendo ela boa ou não. O Sr. Gold veio a falecer inesperadamente, mas deixou como seu legado este álbum tão oportuno e cirúrgico para guiar nossa jornada por este mundo de “céus cinzentos e luz elétrica”; e não sei se pode existir outro acontecimento que consegue ser, simultaneamente, tão trágico e tão bonito. Quer um pós-vida exista ou não, aproveito o ensejo para agradecer o Sr. Gold, onde quer que esteja, por relembrar-me de que a vida dói – sim, a vida dói, mas esta mesma dor é que faz aquilo que é bom valer ainda mais a pena; é a dor que amplifica nossa sensibilidade para que apreciemos o prazer, como vim a comprovar tantas vezes em minhas peregrinações.
“A vida é um fado, mas tem seus pandeiros e mil tamborins.”
(São Carlos, 8 de junho de 2021)