Cinderela baiana
A seguinte afirmação pode parecer chocante a meus estimadíssimos leitores – mas não sou desprovido de um senso de humor.
Aquele que lê meus escritos deve imaginar Galaktion Eshmakishvili como um rapaz profundamente melancólico, amargurado por fracassos acarretados seja por mim mesmo ou por terceiros e desiludido com a existência prematuramente – e estão corretos. Entretanto, refestelar-me em autopiedade a todo momento faria de mim não só uma pessoa, como também um poeta insuportável; meus primeiríssimos escritos de 2009–10 o comprovam, e só tenho a agradecer pela leniência da morte ao permitir-me viver por mais uma década e não deixá-los como meu legado. Um senso de humor demonstrou-se uma ferramenta imprescindível para que eu não perdesse a sanidade junto com as alegrias, e quero crer conseguir ser capaz de conciliar o humor com a tragédia tão agradavelmente quanto minhas maiores influências – Azevedo, Poe e Aurelio Voltaire.
Gosto de ouvir piadas, e igualmente de contá-las (se bem que costumo abster-me deste último devido ao seu teor invariavelmente mórbido), e um de meus passatempos é divertir-me com formas de mídia ruins; julgo que aprender como não produzir entretenimento é quase tão importante quanto produzi-lo de fato. Nada me traz tanto prazer, e um delicioso ataque de risos, quanto ler um livro ou ver um filme que esteja listado em meio ao rol dos piores já feitos – não apenas eu, como qualquer outra pessoa em sã consciência, haveria de pensar algo nesta linha: “Como tamanha atrocidade foi permitida? Que mente deturpada haveria redigido tamanhos disparates, e quem sancionou-os, em primeiro lugar? Será que alguma pobre alma em algum canto do planeta consegue enxergar qualquer valor nisto!?”. Eu particularmente enxergo bastante valor – para meus propósitos irônicos.
Já li tantos livros e assisti a vários filmes de má qualidade quanto colecionei os venenos mais perniciosos sintetizados pela prodigiosa força da invenção de Gutenberg; tolerei com estoica paciência as insanidades de “A Reconquista”, e opino que, em se tratando do Sr. Hubbard, escolhi dos males o menor, pois não pode ser um escritor tão mau quanto foi no papel do fundador de uma “religião” – entretanto, prezo pelo restante de minha sanidade mental para não tocar, nem com um “10-foot pole”, num livro-base da Cientologia. (E mais: insatisfeito com tão pouco sofrimento, quis torturar-me ainda mais vendo a infame adaptação cinematográfica de 2000.) Tornei-me também um sincero fã de Tommy Wiseau, esta verdadeira incógnita que suspeito ter baixado do Planeta Lamma junto com Damião Experiença só para agraciar-nos com este inexplicável tour de force que é “The Room”, e arrumei um lugar especial em meu coração a Ed Wood – as agruras de sua vida formam um contraponto aos pobres valores de produção de seus filmes que os tornam tão risíveis. O que Wood não teve de méritos, teve de resiliência.
Porém, como bom brasileiro que sou, não estou alheio às produções de meu país, e tão patriota quanto brasileiro gosto de expandir os horizontes de minha nação – e posso dizer com o máximo de segurança possível que não somos sobrepujados por qualquer um de nossos vizinhos na arte de fazer filmes ruins. Assim sendo, orgulhosamente proclamo ao resto do mundo que um dos piores filmes já feitos, se não o pior, chama-se “Cinderela Baiana” e é 100% tupiniquim.
Lançado em 1998, é um verdadeiro produto de seu tempo; sinto uma certa nostalgia quando penso que Carla Perez foi um sex symbol por grande parte dos anos 90, e o sucesso do É o Tchan! valida a assertiva (tão propagada que tornou-se um chavão) de que vivíamos em “simpler times”. Não sei qual foi o raciocínio que motivou a Srta. Perez a achar que necessitava protagonizar um filme (e um filme autobiográfico, diga-se de passagem, por mais ficcionalizado que seja) para alavancar a carreira, mas este filme veio a existir, por bem ou por mal, e teve seres humanos trabalhando nele – por mais surpreendente que isto possa parecer, pois todos os componentes deste filme não aparentam ser advindos deste plano terrestre. Mesmo em “The Room” os atores parecem possuir um certo grau de autoconsciência da experiência surreal na qual foram imersos em determinados momentos – todo o elenco de “Cinderela Baiana”, em contrapartida, parece ter sido abençoado com a mais empedernida ignorância.
Nada há de demasiado a discorrer sobre o enredo; é uma história que tenta conciliar tanto um “coming-of-age” quanto um “rags-to-riches”, mas consegue fracassar em ambos, operando seu material do modo mais genérico possível, sem quaisquer atrativos que o diferencie de tantas outras histórias de proposta similar. É impossível simpatizar com a trajetória da protagonista (Perez interpretando a si própria numa versão fictícia) indo da pobreza ao estrelato, pois sua atuação é tão medíocre e inconvincente que abate a suspensão de descrença antes mesmo que possa se estabelecer. Em verdade, todos os personagens não transmitem qualquer confiança – ou são absurdamente rasos e desinteressantes, ou caricaturas de caricaturas.
Vide, por exemplo, os pais de Perez, que são responsáveis por dois grandes momentos de “emoção” do filme: são tão unidimensionais que não se consegue chorar quando a mãe morre, ou alegrar-se com o pai após este receber a promoção no trabalho pela qual tanto esperava. Os dois vagabundos que travam amizade com Perez posteriormente (um deles interpretado por um Lázaro Ramos em início de carreira) são os únicos a possuírem um certo grau de carisma, mal explorado pelo pífio roteiro, e o que dizer do antagonista Pierre (Perry Salles), que mais se assemelha a um vilão de desenho animado do que a uma pessoa que viria a existir neste mundo em carne e osso? É ele a melhor parte de todo o filme, mas pelos motivos errados – é o único personagem cuja atuação é tão ruim que chega a ser boa. A dos demais é ruim, tão somente.
Outro ponto no qual “Cinderela Baiana” peca horrivelmente é na cinematografia. Para um filme que tenta promover não só a carreira da Srta. Perez como também os atrativos da Bahia, não há nenhum belo cenário de Salvador; nada que vejo proporciona-me o desejo de visitar Salvador, ou a Bahia como um todo. E mesmo a visão da Bahia proporcionada por este filme baseia-se em estereotipias: vendedoras de acarajé, terreiros de umbanda, trios elétricos, axé – dança, dança, dança! Quero crer que há muito mais do que isto na Bahia. Ainda se as incontáveis cenas de dança acrescentassem algo ao enredo… mas servem meramente como filler. Talvez o filme não seria classificado como um longa-metragem sem elas.
“Finis coronat opus” – um filme ruim certamente haverá de ter um final ruim. Cogitei dedicar um longo parágrafo descrevendo nos mínimos detalhes minhas emoções ao perseverar até o fim deste lixo midiático, que variaram entre vergonha, incredulidade e triunfo, tendo minha força de vontade revigorada por tal ordália (se pude chegar ao final de “Cinderela Baiana”, a perspectiva de viver até os 70 e poucos anos, que é a média de um brasileiro comum, tornou-se algo muito mais suportável), mas nada do que eu disser fará jus à experiência nua e crua. Aquele que estiver disposto a fortalecer-se pela dor pode corroborar o que digo por conta própria, e agradecer-me depois – ou talvez não.
Encerrando, então, minhas observações, “Cinderela Baiana” é um filme estranhamente divertido. Inquestionavelmente ruim, mas divertido – não só por ser uma coletânea de fracassos em tudo aquilo que a arte do storytelling representa, mas também por lembrar-nos daquilo que os anos 90 tinham de mais outré. Todas as décadas da história humana têm suas fontes de embaraços – que parecem aumentar exponencialmente com a marcha do Tempo.
(E se, mesmo após esta revelação que compartilho convosco, meus leitores, vocês não acreditarem que tenho um senso de humor, estão todos livres a fazerem-me uma visita – e então poderemos assistir a vários outros filmes juntos; isto é, se conseguirem aguentar minhas ocasionais piadas…)
(São Carlos, 12 de junho de 2021)