Themes from William Blake’s “The marriage of Heaven and Hell”
Como evidenciado por grande parte destes ensaios críticos, sou um apreciador do underground. Uma vida passada em isolamento cultural (já que grande parte das produções artísticas deste século me causam grande aversão) fez com que eu buscasse minhas inspirações exatamente em meio àqueles que foram esquecidos ou negligenciados pelas massas. Simpatizo com todos estes artistas cujas obras foram ignoradas e que só alcançaram a fama depois de sabe-se lá quantos séculos, porque penso que será o mesmo a acontecer comigo – coisa que já mencionei en passant ao tratar sobre os outsiders em meu ensaio sobre Damião Experiença. Entretanto, em meio a todos os outsiders e abarcando o underground, um nome reina supremo, e este nome é o de William Blake.
Para um período como o final do século XVIII, Blake estava uns 200 anos à frente de seu tempo; acho muito improvável que outra alma alcançaria um grau de inspiração artística tão sublime e avançado, inventando seu próprio mundo repleto de entidades que personificam as facetas da criatividade humana, mesclando-as com um denso e indecifrável esoterismo cristão. Um verdadeiro artiste, Blake imprimia seus trabalhos por conta própria e os ilustrava de próprio punho, e não há nada tão exuberante neste mundo como uma de suas gravuras; particularmente aquelas de cunho bíblico ou baseadas em seus poemas favoritos, como o “Paradise Lost” ou a “Divina Comédia” – esta última série tendo sido deixada lastimavelmente incompleta devido à sua morte.
Tivesse eu um maior grau de intelecto, aproveitaria o ensejo para comentar toda a obra de Blake no presente texto, mas infelizmente contentemo-nos em enumerá-las: seus livros variam entre os poemas simplistas das “Canções de Inocência e de Experiência” e vastos épicos cosmogônicos, como “Jerusalém” e “Milton” – entre os dois extremos, porém, está sua obra profética mais acessível ao público que é o “Casamento do Céu e do Inferno”. Este livreto expõe uma das maiores preocupações da filosofia de Blake, que é unir razão e emoção num Todo criativo perfeito – e lista os singulares “provérbios do Inferno” intencionando energizar o pensamento do leitor. Li tantas vezes este livrinho tão interessante e tão necessário à humanidade que sei citar grandes trechos seus de cor, e até realizei uma tradução sua para o português que desafortunadamente deixei se perder.
Sou grato a este livro não só por ter-me proporcionado a mais brilhante das luzes, como também por apresentar-me a uma das bandas mais únicas que já tive o prazer de conhecer: o Ulver, da Noruega. Levando a sério o dito de Blake “Aquele que nunca muda de opinião é como a água parada, e cria répteis da mente”, cada um de seus álbuns tem um gênero diferente, e é-lhes impossível seguir uma direção uniforme por muito tempo. Desde os anos 90 o Ulver enveredou pelo black metal, pelo trip-hop, pela música eletrônica, pelo synthpop, entre vários outros estilos – e o divisor de águas de sua carreira foi exatamente uma transposição para a música do “Casamento do Céu e do Inferno”.
Cada parte do livro foi dividida em faixas, e cada faixa tem seu estilo próprio – e é este o grande ponto principal do álbum. Tudo muda constantemente, fazendo com que o ouvinte experimente as visões de Blake tal como ele próprio: num turbilhão. Devo admitir que esta inconstância pode ser irritante a princípio, pois dá a aparência de várias coisas atiradas num só lugar, mas depois de algumas audições o estranhamento diminui – e, como um todo, esta regra se aplica a toda a discografia do Ulver ouvida de uma só vez.
But alas! Adentro em áreas muito além de minha inteligência. Necessitaria de um extenso calhamaço para comentar sobre todos os lançamentos e mudanças estilísticas do Ulver – e acho que posso ver por que escolheram musicar justo um trabalho de William Blake para demonstrar sua ruptura com valores mais tradicionais. Não só é um bom álbum para iniciantes que queiram conhecer o Ulver e que estejam interessados num estilo musical mais denso como também para quem quer estudar William Blake e não sabe por onde começar. Unindo o útil ao agradável, é uma porta de entrada dupla a duas das mentes mais profundamente intelectuais e iconoclastas que já abençoaram a humanidade; assim sendo, abra as portas da percepção, meu leitor, e veja o Infinito desfiar-se ante seus olhos.
(São Carlos, 2 de setembro de 2021)