A panela do diabo
Raul Seixas foi uma parte integral de minha infância, e ainda hoje é um dos únicos refúgios onde posso me recordar de um tempo melhor.
Naquele tempo, sem capacidade intelectual para entender suas letras, me atentava mais às melodias – agora adulto, sigo sem compreender algumas, mas as que compreendi ou que ao menos atribuí uma interpretação pessoal acabaram por me fazer perceber que, se há um cantor que merece ser tão amado e aclamado por tantos fãs, de fato é ele; não só isto, iria eu suficientemente longe para chamá-lo de um William Blake brasileiro, pois foi o mais perto que tivemos de um arauto da liberdade – em todas as acepções da palavra. E da mesma forma que Blake, seu intelecto era tão evoluído que exatamente por esta razão suas letras têm tantas interpretações diferentes dependendo do ouvinte. O significado só o próprio Raul sabe… e talvez esteja rindo de nós ante nossa pretensão de querer dissecá-lo, destrinchá-lo, revelá-lo.
De toda a sua discografia não há um álbum que seja ruim; há alguns em que a distribuição de faixas é desigual, o principal exemplo sendo “Metrô linha 743” – mesmo que desiguais, no entanto, todas elas possuem alguma mensagem sábia ou demonstram seu gênio irreverente e brincalhão. Em seus mais de 20 anos de carreira, e isto fui perceber apenas há pouquíssimo tempo, o suprassumo de seu talento lírico está, ironicamente, em seu último álbum, o canto do cisne – “A panela do diabo”.
A princípio ouvi-o meramente como o era – uma colaboração entre Raul e Marcelo Nova, e uma muito boa, por sinal; os dois se complementam perfeitamente com todo o seu debonaire rock and roll. Mas analisando as letras com mais atenção, vê-se que estão entre as mais críticas e reflexivas que Raul já escreveu, com o tema de sua própria mortalidade sendo o mais frequente. É também um de seus álbuns mais autobiográficos, servindo como um verdadeiro tour de force de toda a sua vida e obra. Apenas a faixa “Banquete de lixo” prova meu ponto.
É por este motivo que, dentre todos os álbuns de Raul Seixas, considero este um dos melhores, se não o melhor: é o last will and testament de um gênio que, já tendo dito tudo aquilo que queria e legado aquilo que pretendia, está livre para deixar as amarras deste triste mundo mortal e juntar-se ao Infinito – deixando a nós como presente sua música, que ao contrário dos homens, nunca haverá de passar.
(São Carlos, 2 de dezembro de 2022)