Sobre AS BAIANAS, contos
(Goulart Gomes)
Quisera ser um resenhista clássico, daqueles que sabem apresentar uma obra literária em todos os seus aspectos. Ou mesmo um crítico exemplar, daqueles que entendem desde semiótica até onde termina o corte epistemológico. Admiro aqueles prefácios, artigos, resenhas que dissecam tanto uma obra que nem é necessário mais lê-la, depois. Contudo, sou apenas um “leitor profissional”, entendendo-se por esta expressão aquele indivíduo que gosta mais de cheiro de livro do que de cheiro de carro novo. E é só dessa forma que posso falar de AS BAIANAS (Casarão do Verbo, 2012), livro de contos que reúne seis dos melhores contistas baianos: Carlos Barbosa, Elieser Cesar, Gustavo Rios, Lima Trindade, Mayrant Gallo e Tom Correia.
O primeiro conto é A Bonnie dos Barris, de Mayrant Gallo. Lembro que há pouco mais de um ano, em conversa com o autor, na Fundação Pedro Calmon, ele me recomendou a leitura de Mistério à Americana, seleção de contos do gênero policial que reune diversos escritores norte-americanos, organizada por Donald E. Westlake, obra adquirida e ainda não lida. E é justamente com um conto “policial” que ele nos brinda nesta coletânea, narrando as aventuras de uma dupla de jovens que se inspiram nos célebres foragidos Bonnie e Clyde, em uma história de paixão e mortes. Mayrant foi meu mestre, literalmente, na pós-graduação em Literatura Brasileira, da UCSAL. Naquela classe de 2002, em que também estava a poetisa Martha Galrão, foi que comecei a descobrir as possibilidades, os truques, as tramas possíveis deste gênero literário, que já me proporcionou tantos prêmios e alegrias. Mayrant domina a técnica do conto exemplarmente, com uma narrativa que prende a atenção do início ao fim.
Elieser Cesar nos apresenta A Guerreira da Lapinha. Este conto, quase uma novela, é um verdadeiro “tratado de baianidade”. Percorrendo a maior parte dos bairros históricos de Salvador, Elieser faz desfilar diante de nós um cortejo de personagens reais e fictícios que nos enchem de saudades de uma cidade que quase não existe mais. A personagem central, Quitéria, é apenas uma “âncora” em torno da qual irão aparecer, citados ou personificados, João Ubaldo, Joana Angélica, Maria Quitéria, ACM, Waldir Pires, Clarindo Silva, Lídice da Mata, Padre Pinto, Irmã Dulce, a Mulher de Roxo, Gerônimo, Jeovah de Carvalho, Fred Dantas, dentre outras históricas personalidades. O conto é um verdadeiro passeio pela nossa cultura popular, um texto para os nativos se deliciarem e para os visitantes conhecerem um pouco mais do bahian way of life.
A península itapagipana, rica região cultural de nossa cidade, está representada em A Santinha da Ribeira, de Tom Correia. Ali percorremos os diversos “largos” da Cidade Baixa: o de Roma, dos Mares, da Calçada, do Papagaio, da Ribeira, além da Avenida Beira Mar, o Caminho de Areia, a Praia de Bogari, a ponta de Humaitá, a Pedra Furada, o Colégio Luís Tarquínio. Nesse conto já prevalece a força da narrativa, em primeira pessoa, em torno de um drama familiar inusitado. A literatura tem este poder e esta função de registrar os fatos com um olhar diferente do registro histórico, oficial, narrando-os sob o olhar de suas personagens. E é dessa forma que Tom Correia demarca, na fala do seu protagonista, esse estado de desmanche e de descaso público em que se encontra Salvador, em um trecho que merece ser transcrito: “A chegada a Salvador me mostrou o mesmo que havia deixado pra trás sem saudade, só que numa versão piorada: as invasões, a água do mar escurecida pelos esgotos, os telhados das casas sem vida. Do alto, a cidade parecia menos inóspita à minha chegada, mas isso fazia parte dos cartazes e anúncios turísticos. Só os imbecis poderiam sorrir ao chegar a uma cidade cariada como esta. As vítimas circulam nos cercadinhos reservados para elas comprarem bugigangas. Depois voltam para o seu mundo mostrando as fotos de gente que elas consideram permanentemente felizes. Na verdade, um povo sem perspectiva vendendo alegria engarrafada.”
A Piriguete de Ondina, que tem o sugestivo e esclarecedor subtítulo de novelinha quase burlesca dos bons e maus costumes baianos, é um dos mais cômicos e reais retratos dos bastidores do carnaval baiano já escritos. Lima Trindade ironiza com as falsas socialytes e outras figuras que fazem qualquer coisa – mas qualquer coisa mesmo! – por um instante de celebridade, em um dos badalados camarotes da cidade. Adultério, homossexualismo, prostituição, chantagens, um verdadeiro vale-tudo (a)moral. A falsidade das relações sociais, o subterrâneo do glamour carnavalesco baiano e suas eternas semideusas, a banalidade dos valores, tudo permeando a vida de Sarita, a garota dourada.
Carlos Barbosa conta a história de uma relação passional, avassaladora, entre uma jovem garota e um homem maduro, em A Putinha da Vitória. Em uma sociedade líquida como a nossa, para usar uma expressão de Bauman, em que as fronteiras entre o permitido e o proibido, entre a perversão e a fantasia se misturam, somos apresentados ao drama de Plínio ante as loucuras de Betina, dois personagens que parecem ter saído de um filme de Woody Allen. Afinal de contas, que não precisa viver seus fetiches?
O conto que fecha a obra não poderia ter sido melhor escolhido. A Noivinha do Cabula, de Gustavo Rios, tem uma narrativa densa, intrincada, bem do jeito que eu gosto. Um texto que exige do leitor, atenção, leitura subliminar, correlações, sinapses. Em alguns momentos lembra o clássico Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues. As imagens são fortes, girando num ir e vir que vai acrescentando, a cada momento, novos elementos e informações ao leitor, que é assim convidado a participar da “montagem” do drama. Simplesmente, antológico.
AS BAIANAS, ao contrário do que pode parecer pelo seu título, não é um manual para se saber “o que é que a baiana tem”. Escrito apenas por homens, não poderia deixar de ter um olhar extremamente masculino, mas a sua real contribuição é mostrar a cidade com as suas mazelas, suas dores, seus sacrifícios, suas personagens caricatas ou reais, suas glórias e fracassos. A principal baiana retratada é a própria Cidade da Bahia, Salvador. A coletânea é um retrato das várias faces soteropolitanas, que ao mesmo tempo em que nos convida a ter orgulho da nossa tradicional baianidade, nos conclama a resgatar todo o patrimônio cultural e urbano que estamos perdendo a cada dia, seja pela gestão pública, cada vez mais nefasta, seja pela adoção e propagação de elementos que ficam muito aquém da constelação de verdadeiros talentos que sempre foi a Bahia. Os autores de AS BAIANAS demonstram que para a nossa literatura, pelo menos, ainda há esperança.
(Goulart Gomes)
Quisera ser um resenhista clássico, daqueles que sabem apresentar uma obra literária em todos os seus aspectos. Ou mesmo um crítico exemplar, daqueles que entendem desde semiótica até onde termina o corte epistemológico. Admiro aqueles prefácios, artigos, resenhas que dissecam tanto uma obra que nem é necessário mais lê-la, depois. Contudo, sou apenas um “leitor profissional”, entendendo-se por esta expressão aquele indivíduo que gosta mais de cheiro de livro do que de cheiro de carro novo. E é só dessa forma que posso falar de AS BAIANAS (Casarão do Verbo, 2012), livro de contos que reúne seis dos melhores contistas baianos: Carlos Barbosa, Elieser Cesar, Gustavo Rios, Lima Trindade, Mayrant Gallo e Tom Correia.
O primeiro conto é A Bonnie dos Barris, de Mayrant Gallo. Lembro que há pouco mais de um ano, em conversa com o autor, na Fundação Pedro Calmon, ele me recomendou a leitura de Mistério à Americana, seleção de contos do gênero policial que reune diversos escritores norte-americanos, organizada por Donald E. Westlake, obra adquirida e ainda não lida. E é justamente com um conto “policial” que ele nos brinda nesta coletânea, narrando as aventuras de uma dupla de jovens que se inspiram nos célebres foragidos Bonnie e Clyde, em uma história de paixão e mortes. Mayrant foi meu mestre, literalmente, na pós-graduação em Literatura Brasileira, da UCSAL. Naquela classe de 2002, em que também estava a poetisa Martha Galrão, foi que comecei a descobrir as possibilidades, os truques, as tramas possíveis deste gênero literário, que já me proporcionou tantos prêmios e alegrias. Mayrant domina a técnica do conto exemplarmente, com uma narrativa que prende a atenção do início ao fim.
Elieser Cesar nos apresenta A Guerreira da Lapinha. Este conto, quase uma novela, é um verdadeiro “tratado de baianidade”. Percorrendo a maior parte dos bairros históricos de Salvador, Elieser faz desfilar diante de nós um cortejo de personagens reais e fictícios que nos enchem de saudades de uma cidade que quase não existe mais. A personagem central, Quitéria, é apenas uma “âncora” em torno da qual irão aparecer, citados ou personificados, João Ubaldo, Joana Angélica, Maria Quitéria, ACM, Waldir Pires, Clarindo Silva, Lídice da Mata, Padre Pinto, Irmã Dulce, a Mulher de Roxo, Gerônimo, Jeovah de Carvalho, Fred Dantas, dentre outras históricas personalidades. O conto é um verdadeiro passeio pela nossa cultura popular, um texto para os nativos se deliciarem e para os visitantes conhecerem um pouco mais do bahian way of life.
A península itapagipana, rica região cultural de nossa cidade, está representada em A Santinha da Ribeira, de Tom Correia. Ali percorremos os diversos “largos” da Cidade Baixa: o de Roma, dos Mares, da Calçada, do Papagaio, da Ribeira, além da Avenida Beira Mar, o Caminho de Areia, a Praia de Bogari, a ponta de Humaitá, a Pedra Furada, o Colégio Luís Tarquínio. Nesse conto já prevalece a força da narrativa, em primeira pessoa, em torno de um drama familiar inusitado. A literatura tem este poder e esta função de registrar os fatos com um olhar diferente do registro histórico, oficial, narrando-os sob o olhar de suas personagens. E é dessa forma que Tom Correia demarca, na fala do seu protagonista, esse estado de desmanche e de descaso público em que se encontra Salvador, em um trecho que merece ser transcrito: “A chegada a Salvador me mostrou o mesmo que havia deixado pra trás sem saudade, só que numa versão piorada: as invasões, a água do mar escurecida pelos esgotos, os telhados das casas sem vida. Do alto, a cidade parecia menos inóspita à minha chegada, mas isso fazia parte dos cartazes e anúncios turísticos. Só os imbecis poderiam sorrir ao chegar a uma cidade cariada como esta. As vítimas circulam nos cercadinhos reservados para elas comprarem bugigangas. Depois voltam para o seu mundo mostrando as fotos de gente que elas consideram permanentemente felizes. Na verdade, um povo sem perspectiva vendendo alegria engarrafada.”
A Piriguete de Ondina, que tem o sugestivo e esclarecedor subtítulo de novelinha quase burlesca dos bons e maus costumes baianos, é um dos mais cômicos e reais retratos dos bastidores do carnaval baiano já escritos. Lima Trindade ironiza com as falsas socialytes e outras figuras que fazem qualquer coisa – mas qualquer coisa mesmo! – por um instante de celebridade, em um dos badalados camarotes da cidade. Adultério, homossexualismo, prostituição, chantagens, um verdadeiro vale-tudo (a)moral. A falsidade das relações sociais, o subterrâneo do glamour carnavalesco baiano e suas eternas semideusas, a banalidade dos valores, tudo permeando a vida de Sarita, a garota dourada.
Carlos Barbosa conta a história de uma relação passional, avassaladora, entre uma jovem garota e um homem maduro, em A Putinha da Vitória. Em uma sociedade líquida como a nossa, para usar uma expressão de Bauman, em que as fronteiras entre o permitido e o proibido, entre a perversão e a fantasia se misturam, somos apresentados ao drama de Plínio ante as loucuras de Betina, dois personagens que parecem ter saído de um filme de Woody Allen. Afinal de contas, que não precisa viver seus fetiches?
O conto que fecha a obra não poderia ter sido melhor escolhido. A Noivinha do Cabula, de Gustavo Rios, tem uma narrativa densa, intrincada, bem do jeito que eu gosto. Um texto que exige do leitor, atenção, leitura subliminar, correlações, sinapses. Em alguns momentos lembra o clássico Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues. As imagens são fortes, girando num ir e vir que vai acrescentando, a cada momento, novos elementos e informações ao leitor, que é assim convidado a participar da “montagem” do drama. Simplesmente, antológico.
AS BAIANAS, ao contrário do que pode parecer pelo seu título, não é um manual para se saber “o que é que a baiana tem”. Escrito apenas por homens, não poderia deixar de ter um olhar extremamente masculino, mas a sua real contribuição é mostrar a cidade com as suas mazelas, suas dores, seus sacrifícios, suas personagens caricatas ou reais, suas glórias e fracassos. A principal baiana retratada é a própria Cidade da Bahia, Salvador. A coletânea é um retrato das várias faces soteropolitanas, que ao mesmo tempo em que nos convida a ter orgulho da nossa tradicional baianidade, nos conclama a resgatar todo o patrimônio cultural e urbano que estamos perdendo a cada dia, seja pela gestão pública, cada vez mais nefasta, seja pela adoção e propagação de elementos que ficam muito aquém da constelação de verdadeiros talentos que sempre foi a Bahia. Os autores de AS BAIANAS demonstram que para a nossa literatura, pelo menos, ainda há esperança.