Invasor Zim (Invader Zim)
O entretenimento infantil é uma das formas mais desonestas de entretenimento que existe.
A impressão que tenho, pelo menos nos dias de hoje, é que todo tipo de conteúdo idealizado para crianças é regurgitado por um gigantesco monstro corporativo, mais preocupado em moldar as mentes dos pequenos para que sejam autômatos a serviço do Século do que imbuir-lhes quaisquer valores que lhes sejam úteis para se adaptarem ao trágico, tétrico mundo que as aguarda. Desenhos animados e programas educativos são quase todos cópias um do outro, com seu imutável, idílico e inofensivamente sacarino teor, ensinando as mesmas velhas lições e vendendo um brinquedo ou outro, como uma certa figura pública bastante conhecida deste meio faz de modo tão inescrupuloso. Um de meus consolos é constatar que, em meio a um oceano de tanta repetitividade e desonestidade, desde o início da década passada, certas mentes pensantes vêm introduzindo temas maduros a desenhos, não tratando sua audiência como imbecis meramente por serem crianças (cito dois de meus favoritos, para não estender-me muito, e também por serem os únicos que acompanhei do começo ao fim: “Gravity Falls” e “Steven Universo” – cujas falhas podem ser facilmente ignoradas se contemplarmos unicamente a seus méritos); mas o que foi que houve desde os anos 90?
Sinto que os desenhos perderam sua habilidade de serem risqué; ao parar para refletir a respeito, muitos dos desenhos de meu tempo tinham como grande vantagem atrair tanto a crianças quanto a adultos por sua tendência a esconder piadas de duplo sentido – que temos nós nos dias de hoje que se compare a “Ren & Stimpy” e “A vida moderna de Rocko”? Um de meus primeiros e, por quase duas décadas inteiras de minha vida, mais respeitados gurus, Tim Burton, já dizia que as crianças necessitam (e até gostam de) ser assustadas – sob este raciocínio fomos presenteados com seu próprio “O estranho mundo de Jack” e, nos anos subsequentes, “Os pesadelos de Ned” e “Coragem, o cão covarde”. Mas até neste meio uma negra ovelha destoa como a mais iconoclasta produção de seu tempo: “Invasor Zim”.
O que o torna tão especial comparado aos demais é seu humor cáustico e negro – cáustico e negro em demasia se comparado a outros produtos de seu tempo. Por mais que o faça de forma velada (pois não deixa de ser um desenho infantil), não há uma convenção da qual não caçoe; ambientado numa versão futurista da Terra – desenhada sob uma ótica cybergoth deveras interessante – onde a tecnologia é avançada mas o QI humano decresceu consideravelmente (como evidenciado pelos vários personagens secundários), não há um personagem que seja simpático – pelo menos não na acepção do termo quando se pensa num desenho animado. Todos possuem um certo grau de insanidade e erraticidade, e fica a encargo das preferências pessoais do telespectador apegar-se a qualquer um deles. Como tudo aquilo que é bom, no entanto, era bom em demasiado para que fosse verdade, e foi abruptamente cancelado deixando vários episódios inacabados.
Por mais que vinte anos hajam se passado desde seu fim, esta ovelha negra ainda possui fãs loucamente apaixonados – eu entre eles – que enchem os ouvidos de seus criadores com súplicas para que retorne. O que me faz pensar que o problema não é a audiência de tal ou tal canal de televisão, e sim seus executivos que subestimam a inteligência da supracitada audiência – se “Invasor Zim” ainda possui aficionados mesmo depois de tanto tempo, é um sinal de que crianças não devem ser tratadas de modo condescendente, e deve-se arriscar retirá-las desta inofensiva prisão colorida, repleta de “1-2-3” e “A-B-C” ocasionalmente.
(São Carlos, 25 de abril de 2022)