As “Krakofonias” de Marcos Andrada
Em minha (ainda) breve carreira como crítico de qualquer coisa que sinto vontade de criticar, este presente trabalho (assim espero) se sagrará como um dos mais importantes e pessoais; primeiramente por ter sido requisitado por meu grande amigo Marcos Andrada, e em segundo lugar por se tratar de uma série de trabalhos seus igualmente importantes e pessoais.
Como ele próprio proclama orgulhosamente, suas oito “Krakofonias” são as composições das quais mais se alegra de ter feito – ele as fez todas sozinho, sem a ajuda de ninguém, com um gravador de fitas em casa, num verdadeiro exemplo da ética DIY pela qual é conhecido. Todas as oito, que são trabalhos longos (com mais de uma hora de duração), densos e experimentais, possuem certos preceitos em comum:
Todas elas começam com guitarra e o amplificador aquecendo, são cantadas em português e empregam samplers invariavelmente. Se encerram sempre com piano e voz, e devem ser ouvidas em ordem decrescente (i.e., iniciando pela 7 e acabando na 0). Pode-se ver que não é um trabalho fácil, a ser apreciado por incautos; mas tomemos algum tempo para estudá-las com mais vagar, com base em minhas interpretações.
Como já mencionado, portanto, iniciemos pela 7ª “Krakofonia” – explica meu amigo que, simbolizando a perfeição de todas as coisas e o ato da Criação divina, nada mais justo do que iniciar por ela. Senti que o tema “vida” permeia esta composição, exatamente por aludir à concepção do eu lírico; vamos chamá-lo de Cantor. O Cantor acabou de vir ao mundo, e o mosaico da Natureza se desbrava ante seus olhos (outro tema recorrente). A música pulsa, fervilha, como uma série de veias nutrindo o intelecto do Cantor, e com tudo parecendo-lhe novo, seu futuro parece promissor.
A 6ª “Krakofonia” é uma mistura interessante entre as paisagens naturais da composição anterior com uma sonoridade de viés mais “urbano” – as letras são de natureza mais descritiva, quase paisagística, e penso que simbolizam o crescimento mental e espiritual do Cantor, explorando seus arredores e buscando por inspiração em tudo aquilo que vê.
Depois de uma ouverture bastante turbulenta, a 5ª “Krakofonia” já se demonstra um tanto mais melancólica e introspectiva – a Natureza das duas primeiras composições anteriores se apresenta num aspecto tristonho, mas não de todo deprimente. O Cantor parece estar passando por uma “noche oscura del alma”, ensimesmado dentro de seu próprio Ser, e um tema recorrente desta “Krakofonia” é a oração; o pedido a Deus para que a vida, que outrora parecia tão exuberante aos olhos do Cantor, volte a trazer-lhe boas sensações. (É importante ressaltar que um dos movimentos da canção, “Maltalegre”, é uma versão primitiva de “Solarium”, do encantador álbum “Bem aéreo”, sobre o qual já escrevi duas vezes.)
A 4ª “Krakofonia” já recupera um pouco da serenidade vista até então na série de composições. Desta vez o tema recorrente é a cura do Cantor – recuperando suas forças e sua felicidade, ele quer exorcizar os demônios que o assolaram na “Krakofonia” anterior, e uma vez mais sentir a bondade de Deus e a perfeição de Sua Criação. Talvez devido a este jogo de chiaroscuro, penso que é uma das melhores e mais inventivas “Krakofonias” – e meu amigo a considera uma das mais importantes da série. Como ele próprio contou-me, sua mão foi quebrada por um desafeto numa briga no intervalo de tempo entre esta composição e a anterior, e esta foi gravada após ele recuperar-se – corroborando a temática de cura.
A 3ª “Krakofonia” é minha preferida pessoal, e uma das composições mais belamente líricas de meu amigo. Explica ele que foi motivada por duas coisas: seu casamento e experimentos com ayahuasca (honi soit qui mal y pense). Pode-se ver já no princípio que os temas desta “Krakofonia” são três: gratidão, amor e união – tanto a união carnal quanto a união com a Natureza. O Cantor está em êxtase em presença de sua amada, agradecendo a tudo que vive, e tudo lhe parece transfigurado; a praia e o mar (duas paisagens ubíquas na obra de meu amigo) se fazem presentes aqui também tão maravilhosamente como sempre, e as melodias repetitivas e quase que tribalísticas do ayahuasca dão ao todo ares etéreos e escapistas – coisa que meu amigo sabe fazer muito bem.
Num throwback à 5ª “Krakofonia”, a 2ª também faz um jogo muito belo de chiaroscuro, com temas ainda mais melancólicos como o desejo de isolar-se e a iminência da morte. O Cantor está envelhecendo, a vida nunca é completamente boa e seu aprendizado nem sempre pode trazer boas experiências, mas o importante é transformar o mal em belas inspirações. De suma importância, pelo menos para mim, é a elegia a Michael Jackson presente nesta composição, que é descrito pelo Cantor como um grande parágono da música – demonstrando que até algo como a cessação da vida tem seus encantos. Um dos movimentos serve como uma espécie de prelúdio à próxima, sendo que é uma homenagem à filha do Cantor, e veremos dentro em breve como esta e suas duas sucessoras estão interligadas. Talvez devido a esta temática morte/vida, considero-a uma das mais complexas “Krakofonias”, que deve ser ouvida com atenção redobrada se comparada às demais.
A 1ª “Krakofonia” serve como uma espécie de ponte entre a anterior e a seguinte – esta foi feita em homenagem à filha de meu amigo, evidente pelas risadas de bebê utilizadas com frequência como samples. Após a ameaça da morte no trabalho anterior, a vida retorna com toda a sua potência, na forma de um novo ser recém-concebido – o Cantor uma vez mais se preenche com vida, e numa das mais lúdicas e oníricas composições da série parece querer pintar como a existência se materializa ante os olhos de um bebê pequeno, cercado de amor paterno.
E, por fim, chegamos à derradeira “Krakofonia”, a de número 0. Explica meu amigo que esta simboliza o “eterno retorno”; o grande ovo cósmico que eclode, acarretando o início de Tudo – e, se me for permitido acrescentar minha própria interpretação, considero eu esta “Krakofonia” o fim da vida do Cantor (por isto a ponte 2 – 1 – 0; morte, vida, morte). Tendo vivido uma vida plena, é hora dele deixar este mundo; mas seria mesmo a morte o fim? Não neste caso: nosso amigo apenas retornou à Anima Mundi, sua essência armazenada no grande ovo, que haverá de eclodir e reformar-se ad infinitum, reiniciando o ciclo do Samsara do zero – fazendo-me recordar, sorridente, do ovo de Leminski, aquele mesmo ovo “que choca o mesmo novo”.
Chegamos, agora, ao fim desta jornada – tão árdua e dificultosa, mas que preencheu-me de grande prazer e satisfação. Posso comparar as “Krakofonias” de Marcos Andrada ao “Prelúdio” de Wordsworth ou aos “Cantos” de Pound, no sentido de que as três obras registram o crescimento mental e espiritual do compositor, e exatamente por isso são tão indescritíveis e, portanto, trabalhosas à compreensão do cidadão comum. Podemos escalar os Alpes, ou o Himalaia, mas nunca os entenderemos por completo – podemos apenas chegar ao fim da excursão e contemplarmos o majestoso horizonte que se desponta à nossa frente, tendo aprendido alguma coisa com tal feito. Pois bem! Tendo eu chegado ao fim, o que aprendi é que não posso descrever meu amigo por completo, mas sinto uma imensa gratidão por ser um dos poucos privilegiados a apreciar esta série de trabalhos e sobre ela escrever, e espero que algum dia vários outros corajosos sintam-se à vontade para tentar a sorte em tamanha expedição, tão hercúlea mas tão recompensadora.
(São Carlos, 9 de agosto de 2022)