AS GALINHAS DE CLARICE LISPECTOR E JOÃO ALPHONSUS

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LISPECTOR, Clarice. Uma galinha. In: id. Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século XX. Ítalo Moriconi. Rio: Rocco, 2000. p.258-260

ALPHONSUS, João. Galinha cega. In: id. Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século XX. Ítalo Moriconi. Rio: Rocco, 2000. p.85-91



Dentre os mais diversos animais, parece ser esta ave galiforme, fasianídea, chamada galinha, a preferida dos escritores brasileiros. E este destaque torna-se tão proeminente ao observarmos que dois contos que as têm como personagens centrais estão inseridos na polêmica obra recentemente lançada no Brasil, intitulada OS CEM MELHORES CONTOS BRASILEIROS DO SÉCULO XX, organizada pelo professor Ítalo Moriconi: Uma galinha, de Clarice Lispector e Galinha cega, de João Alphonsus. Como se não bastasse, ainda está inserido na obra citada um terceiro conto, O galo impertinente, de José J. Veiga que como o próprio título indica, tem outro galináceo no papel principal. Mas é sobre elas que pretendemos falar.

No ambiente rural são a galinha e o cão os animais domésticos mais próximos do Homem. Mas, ao contrário do "melhor amigo do Homem", ela evidencia, desde logo, a sua sina universal, quase que invariável: nascer, crescer, comer sua ração, beber água olhando para o céu, por ovos, chocá-los e ir para a panela. Qualquer semelhança com a sina humana de nascer-reproduzir-morrer (olhando ou não para o céu) não é mera coincidência. Talvez, daí, esta aproximação do escritor, aquele que procura, da sua forma, com o seu talento, romper esta tríade maldita, dando um sentido à existência.

O primeiro conto que citaremos é o de Clarice Lispector. Natural da Ucrânia, Clarice veio para o Brasil ainda recém-nascida, tornando-se uma das escritoras mais importantes da ficção de vanguarda no Brasil, nos anos 60, ao lado de Guimarães Rosa. Seu romance de estréia na literatura, Perto do Coração Selvagem, obteve o Prêmio Graça Aranha, em 1944. Habitualmente intimista em seus textos - quem sabe, talvez, por alguma influência avoenga dos ucranianos - ricos em metáforas, observa o crítico Alfredo Bosi que "há na gênese dos seus contos e romances tal exacerbação do momento interior que, a certa altura do seu itinerário, a própria subjetividade entra em crise"(1). Assim se dá no conto Uma galinha, publicado originalmente no livro Laços de Família, de 1960.

Neste conto, uma "galinha de domingo", como ela faz questão de observar logo na primeira oração, decide fugir à sorte (sic) que lhe aguarda - ser o prato principal do dia - e, repentinamente, empreende uma fuga do lar que afetuosamente a acolhera. Encetando um breve vôo, logra atingir os telhados vizinhos e realiza uma fuga hollywoodiana, perseguida de perto por um de seus algozes. Finalmente apreendida, não suportando a pressão psicológica a que foi submetida, cumpre o seu exercício: põe um ovo. É neste momento que a história ganha um outro rumo. Uma menina, filha do casal, quem sabe se pelo instinto maternal latente, intervém: não era possível matar uma jovem mãe! A ela outra mãe se junta: a sua própria, e enfrentam o pai, que, evidentemente, possuía outros instintos bem menos nobres. A galinha é, naquele momento, poupada. Ninguém sabe do destino do ovo. Se virou filhote, se cresceu para perpetuar a história das galinhas. O certo é que, passado algum tempo, acalmados os ânimos e esquecidos os fatos, a galinha cumpriu o seu destino: foi para a panela.

De início, esta galinha de "cabeça vazia", em que nunca "se adivinharia nela um anseio", parece repentinamente, num vislumbre de razão, ter pressentido qual seria o seu destino, e dele se propõe a fugir. O que lhe salva, então, é a maternidade. E é Clarice quem afirma, ao contemplá-la neste período maternal, que "esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre nem triste, não era nada, era uma galinha". Se Clarice conhecera - e isto é bem provável - o poema Motivo (canto porque o instante existe / e a minha vida está completa / não sou alegre nem sou triste / sou poeta), publicado por Cecília Meireles, em 1939, no livro Viagem, poderíamos até nos perguntar se não estaríamos diante de uma galinha-poeta.

Ao contrário da celebérrima Clarice Lispector, João Alphonsus não é um autor tão conhecido, apesar de igualmente talentoso. Mineiro, contemporâneo de Drummond, Pedro Nava e Emílio Moura, publicou o conto Galinha cega em 1931, no livro Contos e Novelas, impresso com recursos próprios.

Em Galinha cega as histórias da galinha e do seu dono, um carroceiro - ambos igualmente anônimos - se superpõem, se misturam, apesar de distintas, uma influenciando a outra. A galinha tem, no hiato de tempo que compreende o conto, o poder de dignificar aquela existência pacífica e monótona do rude trabalhador braçal, dando-lhe uma significância, ainda que temporária.

Esta, uma galinha tranqüila que, diferentemente da de Clarice, sentia-se feliz por ter liberdade, milho e um galo que eventualmente a cobria, após persegui-la em desenfreada carreira por todas as partes. Deste momentos, Alphonsus nos revela o "propósito inconscientemente feminino de se esquivar, querendo e não querendo". Mas este mundo, que Voltaire parodiando Leibniz diria ser o melhor dos mundos possíveis, ruiria: a galinha, vítima de um mal ignorado, tornava-se irremediavelmente cega, o que logo foi percebido por seu proprietário - levado às lágrimas - e por ela própria quando se vê "dentro do infinitamente preto; perdida dentro do inexistente, pois que o mundo desaparecera".

Foi então que os fatos se precipitaram. Um grupo de meninos, na falta de uma bola melhor, fizeram da galinha sua pelota, despertando a fúria do carroceiro que chegava e, de chicote em punho, "zebrou carnes nos estalos da longa tira de sola". Para seu azar, dentre os moleques estava o filho do delegado. É preso e quando sai do xadrez, no dia seguinte, voltando para casa, encontra sua galinha morta, por falta de cuidados da sua companheira - Inácia, a única que tem o nome citado em todo o conto - e pela arte de algum gambá. Bate na companheira e volta para a cadeia. Quando volta para casa, pela segunda vez, predispõe-se a pegar o bicho assassino, prepara uma armadilha, defronta-se com o vilão, mas a vingança já não era importante. A galinha já estava morta. Manda-o embora e vai dormir o sono dos justos, embaixo de uma pitangueira.

Se o texto de Clarice nos repete à poetisa Cecília, o de João Alphonsus nos faz lembrar Ferreira Gullar. Não uma galinha dentro da noite veloz, mas dentro da escuridão. Uma galinha que seria irremediavelmente morta, como tudo que vive. É o poeta maranhense quem nos faz lembrar: GALINHA // Morta / flutua no chão. / Galinha. / Não teve o mar nem / quis, nem compreendeu / aquele ciscar quase feroz. Cis- / cava. Olhava o muro, / aceitava-o, negro e absurdo. / Nada perdeu. O quintal / não tinha / qualquer beleza. / Agora / as penas são só o que o vento / roça, leves. / Apagou-se-lhe / toda a cintilação, o medo. / Morta. Evola-se do olho seco / o sono. Ela dorme. / Onde? onde?

Nestes contos, evidencia-se fortemente a tese do crítico Ricardo Paglia (2), quando propõe que todo conto sempre conta duas histórias: uma visível, outra secreta. E na arte da elipse na narrativa destes dois fabulosos escritores somos reportados a outra afirmação de Paglia, relembrando a "teoria do iceberg" de Hemingway: o mais importante nunca se conta, deixa-se assim ficar subentendido.

E mais ainda, se como quer Harold Bloom(4), a " ironia liberta a mente da presunção dos ideólogos, e faz brilhar a chama do intelecto", então estes autores atingiram a maestria, confundindo a tragicomicidade das existências dos bichos e seus donos, traçando um irônico retrato da condição humana.

O certo é que estas galinhas parecem provocar, nos seus donos, um sentimento de identificação, como se o quê de inexorabilidade no destino delas encontrasse reflexo na própria existência humana. Criadas para servirem de alimento, enquanto a galinha de Clarice é arrojada, revoltada, paranormal, preocupada com os desígnios que lhe são impostos, a galinha de Alphonsus é resignada, mansa e pacífica. A ela, bastaria a vida que levava, ocasionalmente visitada pelo galo de asas brancas. Era feliz, independente do fim que a aguardasse. Fim comum a tudo e a todos.

Se a história destas aves de alguma forma cria a empatia que Harold Bloom ressalta como tão necessária ao texto literário é porque, de algum modo, nelas vemos um pouco da nossa própria história, cegos que somos quanto aos desígnios que nos são impostos, postergando indefinidamente a resposta às perguntas que nos atormentam acerca do enigma da vida, seja ela humana ou animal.


(1) BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1980.
(2) PIGLIA, Ricardo. Teses sobre o conto. In: id. O laboratório do escritor. Tradução de Josely Vianna Baptista. São Paulo: Iluminuras, 1994. p. 37-41.
(3) GULLAR, Ferreira. Toda Poesia. Rio: Civilização Brasileira, 1981. p-30
(4) BLOOM, Harold. In. id. Como e porque ler. Rio: Objetiva, 2001, 275p. Trad, por José Roberto O'Shia



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