Jilemnický okultista
“Não há nada de novo sob o Sol”. Esta máxima, vigente desde os tempos bíblicos, ironicamente continua a dar os ares de sua graça ainda hoje. Em particular porque, a esta altura, de fato deve ser contemplada sub specie æternitatis: apenas imitamos em nossos feitos aquilo que nos foi legado por nossos predecessores. “Nada se cria, tudo se copia”, valendo-me de um adágio um tanto quanto mais informal, porém autoexplicativo – e a regra vale para toda e qualquer forma de mídia já criada.
Tudo teve um precedente, e salvo engano nada foi inventado sem fontes prévias – “nada veio do nada, e nada pôde ter sido criado a partir de nada”. Um dos maiores exemplos disto é a famosíssima peça de Shakespeare, “Romeu e Julieta”; conquanto o Bardo haja se munido de sua vasta criatividade para contar uma bela história, ele não a inventou por completo – apenas adaptou uma história já existente de acordo com suas inclinações. Por si só, a premissa de dois amantes cuja união é obstruída por acontecimentos fortuitos é tão antiga quanto o mundo, e na versão de Shakespeare viria a influenciar várias outras obras por sua vez. Não que isto seja algo ruim; o diferencial de todo escritor é saber contar uma história, por mais não original que seja, a seu próprio modo, acrescentando-lhe novos detalhes como bem preferir e valendo-se de suas influências para adequá-la a seu estilo.
Muitas de minhas inspirações provêm da música – grande parte de meus trabalhos teve uma canção por trás, seja em versos ou estrofes inteiras; e por isso um de meus passatempos favoritos é sair à caça de bandas que possam fornecer-me material em potencial. E gostaria de aproveitar o ensejo no presente texto para não só apresentar-lhes um álbum excelente (que ouço quase todo dia desde que o conheci inclusive), como também recordar-me com bastante carinho sobre um de meus escritos prediletos que é o romance em verso “Alceste, o ocultista de Vilnius”.
Gosto muito de black metal – o que é uma questão de gosto adquirido, justifico-me. Há quem goste, há quem não – mas até eu devo admitir que alguns possuem letras ótimas enquanto a instrumentação é horrível, ou vice-versa. Como me interesso bastante por países do Leste Europeu, foi só uma questão de tempo até que pesquisasse por bandas de lá e fosse guiado à enigmática República Tcheca pelas mãos do Master’s Hammer.
Ao contrário de outras bandas contemporâneas, as letras do Master’s Hammer não focam tanto em temas satânicos, sendo voltadas a assuntos mais surrealistas e metafísicos, referenciando desde a ‘patafísica ao espiritismo. Donos de um estilo inconfundível que mistura canto operático, música eletrônica e canções folclóricas, são de longe a banda mais inventiva de toda a cena do black metal. Mais inventivo ainda é seu álbum de 1992 “Jilemnický okultista”, descrito como “a primeira opereta black metal do mundo”.
Misturando agressividade e erudição, não poupando o uso dos timpani e sintetizadores, o álbum flui naturalmente entre uma faixa e outra, de fato como as árias de uma opereta. Seu enredo que carrega em si elementos históricos, espíritas e fantásticos foi muito bem pensado e tem um maravilhoso sabor oitocentista, como se houvesse sido criado por uma mente como a de Hoffmann, Ludwig Tieck ou Goethe. Como não haveria eu de inspirar-me por um álbum tão sublime?
Todos os pormenores da criação do “Alceste” estão em seu prefácio, então não haverei de aprofundar-me muito – recordarei apenas brevemente os eventos que se sucederam. Tomando a mesma premissa do álbum (um triângulo amoroso entre um ocultista itinerante, uma jovem moça e um nobre traiçoeiro), criei eu minha própria história, acrescentando novos personagens e alterando vários detalhes para deixá-la original mas sem perder a inspiração principal de vista. Com toda a certeza o Sr. Štorm (a mente por trás do Master’s Hammer e a quem inclusive dediquei o Alceste num sinal de gratidão) também bebeu de alguma fonte para inventar seu conto – e este constante empréstimo de fontes é o que nos proporciona maravilhosas criações. Três anos depois, ainda agradeço de aluno a mestre por tamanha troca, e repito incisivamente o provérbio de Lautréamont: “O plágio nada mais é que a retificação de ideias”. Que continuem, portanto, a ser retificadas e renovadas ad infinitum sob o Sol!
(São Carlos, 22 de setembro de 2021)