Damião Experiença
Já houve quem dissesse que a poesia é uma forma de insanidade – e talvez, em certo grau, tal comentador tão sisudo estivesse certo. Afinal, que é o gênio poético fora um estado alterado de consciência? Tanto é que, em tempos passados, poesia e profecia eram quase que sinônimos – daí o termo vate.
E é pensando nesta acepção que tolerar as injúrias dirigidas quase que diariamente a meu ofício tornou-se algo muito mais fácil neste nosso século que, tão distante daqueles áureos tempos dos celebrizados vates de Roma e da Grécia, proclamou que a insanidade da poesia vale menos do que outras, definitivamente muito mais nocivas ao bem-estar público.
Uma consequência muito mais positiva advinda desta associação entre arte e loucura que sempre me é proposta é que viria a despertar meu interesse na loucura propriamente dita, e na percepção da realidade de indivíduos que perpetuamente vivem num estado de consciência alterado. À beira deste vertiginoso abismo contemplei uma miríade de esquizofrênicos, alcoólatras, drogados, autistas que me trataram com mais amabilidade do que incontáveis pessoas sãs que supostamente deveria chamar de “meus compatriotas” – e aqueles que experimentam transmitir suas percepções pela arte costumam realizar obras mais intrigantes e de melhor qualidade do que aquilo que costumo ver exposto nas galerias. Referindo-se a um dos maiores outsiders (termo com o qual a modernidade viria a classificar estes iconoclastas “marginais” das artes) que já viveram, Wordsworth disse preferir as visões de William Blake ao siso de Walter Scott e Byron – e posso repetir com ele que as alucinações e os devaneios de um louco costumam me ser mais interessantes do que a grande maioria das produções artísticas da atualidade.
Poderia discorrer sobre vários outsiders de minha predileção para exemplificar meus argumentos, mas apenas um bastará como o mais emblemático de todos – pelo menos de meu próprio país: Damião Ferreira da Cruz, mais conhecido como Damião Experiença.
Começando por seu nascimento, Damião é a incógnita mais outré a agraciar nosso solo pátrio; quase nada se sabe de sua vida antes de ter começado a carreira musical. Como diz a lenda, fugiu de casa ainda criança e na adolescência veio a se alistar na Marinha, onde sofreu um acidente que veio a desencadear a erraticidade de suas ideias – caiu da gávea de um navio, batendo a cabeça. Foi aí que morreu Damião Ferreira da Cruz para dar lugar a Damião Experiença, literalmente um experimento musical ambulante.
A música de Damião é difícil de se caracterizar, tanto lírica quanto instrumentalmente. Único musicista de todos os seus lançamentos, o cantor pode dar vazão ao caos de sua mente sem ser perturbado – martelando os instrumentos a seu bel-prazer, as “letras” na grande maioria são constituídas por ininteligíveis gritos primevos ou ideais heterodoxos. Admitamos: à primeira vista, canções como “Eu Só Gosto de Mulher Lésbica” e “Eu Gosto de Apanhar de Mulher” causariam estranhamento e riso a um ouvinte desprevenido (como foi o meu caso, a princípio), mas quem aguentar perscrutar o catálogo de Damião – ainda que com intuitos irônicos – encontrará pérolas de sabedoria insana; tão simples e diretas que qualquer um que as escutasse as julgaria banais. Mas não é assim com todas as verdades do mundo?
Veja-se, por exemplo, a letra de “O Mundo Foi Bem-Feito”:
“O mundo foi bem-feito
Todo mundo tem defeito
Ninguém é direito […]
Vocês só sabem criticar as mulheres da rua
E os travestis, e as mariposas
Não sabem vocês que eles são ser humano
Gerado de vocês?”
Uma releitura expandida de “Não julgueis para não serdes julgados”. Um ensinamento proferido há milênios, e ainda assim frequentemente ignorado!
Da mesma forma que Blake, Damião também criticava quaisquer formas de religião organizada. Como demonstra em “A Cor Ariana”:
“Quem nasce com Deus não precisa de intermediário
Para andar com ele dentro de seu coração”
Em várias de suas canções alude ele aos “homens da cara preta que batem de marreta” – obviamente representando a brutalidade policial, mas mais profundamente as autoridades que nos regem (tanto em governo quanto em sensibilidades culturais) e que tornam a vida em sociedade tão complicada para os outsiders. Ainda discorrendo sobre o tema de abuso de autoridade, veja-se “A Gente É Vigiado”; muitas das músicas de Damião não possuem uma data certa, pois a grande maioria de seus álbuns não é datada, mas décadas antes este vate previu a intrusividade da mídia e dos aparelhos tecnológicos que passaram a desempenhar um papel cada vez mais constante em nosso dia a dia.
Poderia eu discorrer sobre inúmeras outras de suas canções ideologicamente contraditórias, mas páginas e páginas de texto seriam necessárias para explanar-lhes o sentido – se é que têm algum. Nada precisa fazer sentido o tempo todo, e é este um dos charmes da loucura. Mas encerro minhas observações com uma última citação de Damião, que faz-me sentir nas profundezas da alma como é ser um outsider – um peixe fora d’água, mas com orgulho:
“Eu sou peixe, mas estou aqui na terra
Porque eu não gosto do mar”
Toda a obra de Damião ambienta-se no “Planeta Lamma”, onde todos são iguais e não há riqueza ou pobreza. Ele próprio veio a explicar que tal planeta é uma alusão à “lama” – obviamente, o “pó” ao qual todo homem, seja ele insano ou não, haverá de retornar. E se há ao menos uma coisa de certa em toda a vida desta figura tão quixotesca da música brasileira é que, em 10 de dezembro de 2016, retornou ao planeta de origem – e em minhas horas de cisma gosto de conjeturar que o Planeta Lamma é como aquela “verdadeira ilha de Barataria, onde Sancho é rei” sobre a qual escreveu Álvares de Azevedo. Lá Damião e todos os outros outsiders, marginais, delirantes podem viver sem que estes “sãos” tão sisudos queiram lhes menosprezar e diminuir o valor de seu labor artístico, por mais incompreensível que seja a um incauto. Ignorado por quase toda a população quando vivo, Damião partiu tão incógnito quanto viveu – e em nome de seus genuínos fãs inscrevo-lhe um merecidíssimo epitáfio, como Azevedo tão oportunamente veio a colocar:
“Se o teu cérebro
Toldou-se na loucura, a tua insânia
Vale mais do que o siso destes séculos,
Em que a Infâmia, Dagon cheio de lodo,
Recebe as orações, mirras e flores,
E a louca multidão renega o Cristo!”
(São Carlos, 10 de maio de 2021)