Batman: O retorno
Minha admiração e gratidão pelo cineasta Tim Burton não conhecem limites.
Descobri seu trabalho num dos períodos mais negros de minha vida – a adolescência, que, enquanto para uns é um tempo alegre de descobertas e novas amizades, para outros (contando comigo) é uma fase que nada tem de bom a oferecer. Falo por mim mesmo quando digo que, entre meus 14 e 17 anos, sujeitaram-me a uma miríade de “humilhações, ódios, sarcasmos, trabalhos degradantes, incertezas, angústias, pesares e torturas do coração” que ainda hoje, comigo beirando a soleira da meia-idade, influíram de forma deveras negativa e indelével em meu gênio. À época, as obras de Burton e minhas disposições foram um “match made in Heaven” – pude encontrar alguém que compartilhava de meu senso de isolação e peculiar visão de mundo.
O que mais chamou-me a atenção em seus filmes são os personagens bizarros, porém carismáticos, muitas vezes mal compreendidos tentando se ajustar na sociedade dos “normais”. Seja um filme de visuais mais ou menos fantásticos e surreais, esta noção continua a permear a œuvre de Burton, por mais que seu descontentamento e estranhamento em relação à sociedade tenham esfriado com a idade e a experiência que adquiriu ao longo dos anos – mesmo que seus filmes tenham perdido aquela visceralidade crua inerente a seus trabalhos mais antigos, continuo a acompanhá-los com assiduidade e carinho sempre que posso, lembrando-me daquele tempo em que eram meus únicos amigos e uma válvula de escape aos meus infortúnios.
Muitas vezes interrogaram-me qual de seus filmes acho o mais emblemático – e julgam estranho quando minha resposta não é “Edward Mãos-de-Tesoura”, “Beetlejuice” ou até mesmo “O Estranho Mundo de Jack” (tecnicamente não dirigido por ele, mas que ainda assim foi seu maior esforço criativo). Gosto muito destes três filmes, e de quase toda a sua filmografia como um todo, concedo-o; mas os filmes de Burton que mais me impactaram foram sua duologia “Batman” – em particular o segundo, “Batman: O Retorno”.
Meu conhecimento de super-heróis é limitado, e assisti a ambos os filmes mais pelo diretor do que pelo material fonte; entretanto, pensei comigo mesmo que foi uma escolha apropriada. Só alguém como Burton conseguiria retratar o personagem de Bruce Wayne (aqui interpretado por Michael Keaton), um homem profundamente marcado pela morte dos pais e que tenta equilibrar uma vida em sociedade quase perfeita com sua identidade secreta de “Batman”. Não só isso, como os vilões que o herói deve enfrentar, que são pessoas mentalmente instáveis e se deixaram sucumbir à total alienação social – no primeiro filme, este embate entre sanidade e insanidade, e as circunstâncias da questão “nature versus nurture”, são muito bem representados na figura do Coringa, tão maravilhosamente interpretado por Jack Nicholson. Mas no segundo filme estas questões são abordadas de modo ainda mais pronunciado, o que o torna ainda melhor do que seu predecessor.
Todos os personagens são complexos e duais em “Batman: O Retorno” – além de Bruce Wayne, obviamente, há o Pinguim (Danny DeVito), que abandonado no esgoto quando criança, age como age por ressentir a infância feliz que nunca teve; há a Mulher-Gato (Michelle Pfeiffer), que tem suas ilusões destruídas e num arroubo de insanidade declara sua vingança contra a cidade; e até o magnata Max Shreck (Christopher Walken), responsável direto pela existência dos dois precedentes, justifica sua ganância pelo amor ao filho. É quase que impossível não se comiserar do Pinguim, manipulado por Shreck do começo ao fim e levado cada vez mais a extravasar seu ódio pela humanidade de modos extremos e homicidas, ou da Mulher-Gato, que luta contra seus sentimentos bons e ruins o filme todo, deixando ora uma metade, ora a outra dominá-la.
Talvez tendo em vista sua temática mais séria e o fato de Burton ter recebido carta branca para dirigir o filme a seu modo, sem interferências, em termos visuais “Batman: O Retorno” tem uma estética muito mais sombria e deprimente do que o filme anterior – enquanto o primeiro retrata Gotham como uma metrópole decadente de um jeito deveras típico, o segundo a transforma num lugar verdadeiramente opressivo, com prédios ameaçadores e angulares e estátuas gigantescas sempre à espreita com seus rostos inexpressivos. Isto somado à ausência de cores vibrantes como um todo demonstra a forte influência do expressionismo alemão, admitida pelo próprio Burton – olhos atentos encontrarão diversas referências a “Metropolis” e a “O Gabinete do Dr. Caligari”.
Por último, mas não menos importante, a trilha sonora do frequente colaborador de Burton, Danny Elfman, acrescenta ao conjunto uma atmosfera quase que mágica, sempre brincando com o chiaroscuro e suscitando emoções que vão da euforia à melancolia a um lúrido romantismo – como nas cenas mais tocantes que, em minha opinião, são aquelas que demonstram o amor trágico e malfadado de Bruce Wayne/Batman e Selina Kyle/Mulher-Gato.
A realidade em que vivo não é muito diferente desta ficção. Pude apenas encontrar meu consolo em meio aos horríveis blocos de concreto de São Paulo e Kishinev devido à grande impressão causada em mim por este filme (e seu predecessor, se bem que em menor escala) e compreendi as dores de ambos os lugares por tê-las vivenciado de antemão – assim sendo, consigo enxergar nas trevas a beleza que muitos não veem. À época de seu lançamento, “Batman: O Retorno” não foi compreendido pela crítica exatamente por sua atmosfera demasiado macabra, mas independente do que digam, sempre será o filme de Tim Burton com o qual mais tenho afinidade; afinal, foi ele que ensinou-me a embelezar a escuridão de minha vida e abraçá-la como parte de meu ser – seja isto bom ou ruim.
(São Carlos, 24 de agosto de 2021)