Tudo pode dar certo: Woody Allen e Machado de Assis

 
Se você, leitor, acha que vai encontrar aqui uma resenha do último filme de Woody Allen - "Tudo pode dar certo" -, pode parar de ler agora e ir procurar noutro lugar! Também não vou falar do retorno de W. Allen a Manhattan depois do exílio na Europa nem que o ator principal encarnou o cineasta.

É mais ou menos isso que Boris, protagonista de "Tudo pode dar certo", faz no início do filme.

O que desejo ressaltar é a estrutura narrativa: Boris é um narrador-personagem que fala diretamente com o público. Embora comuns em literatura, narrativas em primeira pessoa são raras em cinema.

Na primeira cena do filme, ele se afasta das outras personagens (que o incentivavam a contar a sua estória) e, olhando diretamente para a câmera, fala abertamente com o espectador.

“Este não é um filme alegrinho. Se você é daqueles idiotas que precisa se sentir alegrinho, vá fazer uma massagem nos pés," diz Boris, logo de cara.

O mais engraçado é que as outras personagens não entendem por que ele está se afastando e falando "sozinho". Na verdade, o cineasta brinca com a onisciência do narrador, que, em certos momentos, diz ter uma uma visão ampla de tudo. Enquanto nos livros o narrador personagem fala ao leitor - opinando, julgando, sem que as outras personagens interfiram -, no filme, W. Allen quebra (mais uma vez - v. "A rosa púrpura do Cairo") os limites entre ficção e realidade e deixa que as outras personagens reajam diante dessa intervenção.

A idéia de iniciar o filme dessa forma - abordando os motivos pelos quais deveria contar a estória -, bem como a ironia e o pessimismo de Boris, remeteram-me a "Memórias póstumas de Brás Cubas".

Machado de Assis, no prólogo, ressalta que a peculiaridade de Brás Cubas é justamente o que ele chama de "rabugens de pessimismo." E o próprio defunto narrador esclarece ao leitor que escreveu a obra com "a pena da galhofa e a tinta da melancolia."

Outra semelhança é o narrador-personagem rabugento que, ao contar seus dramas, torna-os cômicos. Tanto em "Memórias póstumas..." quanto em Tudo pode dar certo, a morte é tratada de forma irônica.

As tentativas de suicídio de Boris e seu pânico diante da idéia de que irá morrer um dia fazem da morte motivo de riso; da mesma forma, Brás Cubas, que dedica suas memórias ao verme que primeiro roeu as frias carnes do seu cadáver (há inclusive um diálogo no filme que fala em vermes).

Com efeito, ambos zombam da existência, consideram-na um mal, algo sem sentido; ouso dizer que a frase derradeira de Brás Cubas, “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria,” soaria absolutamente natural nos lábios de Boris.

Não é segredo que Woody Allen admira a obra de Machado - v. entrevista em www.geneton.com.br/archives/000070.html - e, embora isso não faça diferença no fim das contas, parece que ele se inspirou no nosso Bruxo do Cosme Velho. Boris, assim com Brás (a semelhança dos nomes seria mera coincidência?), narra sua própria estória e o faz depois de quase morrer – é, pois, um narrador quase-finado (eu sei, eu sei, agora forcei a barra...).

O que importa realmente é que as duas obras são interessantes e divertidas; havendo ou não relação entre elas, ambas merecem atenção. A existência pode não fazer muito sentido (ainda mais quando, como Boris, queremos compreendê-la apenas racionalmente), mas a arte, a ficção conseguem dar algum sentido à realidade.
 
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Ficha técnica
Título original: Whatever Works
Lançamento: 2009 (França) (EUA)
Direção: Woody Allen
Atores: Larry David, Evan Rachel Wood, Ed Begley Jr., Henry Cavill, Patricia Clarkson
Duração: 92 min
gênero: Comédia