Sobre SE UM VIAJANTE NUMA NOITE DE INVERNO

Certa vez, há mais de trinta anos, uma professora primária reduziu a minha avaliação em uma redação porque utilizei a palavra "numa". Segunda ela, essa palavra não existia. Eu não sabia que poderia contra-argumentar dizendo que "numa" é a contração da preposição "em" com do artigo feminino "uma", do que poderia resultar três coisas: a) ela concordar; b) me dar dois "bolos" de palmatória; c) esfregar meu nariz no dicionário (literalmente) para provar que a palavra não existe. No que estaria certa, pois até a última edição do Houaiss "numa" não estava incluída nem mesmo como o leão do Tarzan, ainda que Caetano Veloso já a tenha imortalizado em "Leãozinho" e o título em português do clássico de Italo Calvino a utilize. Era um tempo em que as professoras ganhavam tão mal quanto hoje.

Mas, deixando a gramática de lado (que eu quero é ficar colado à Literatura noite e dia), esse autor nascido em Cuba, mas de nacionalidade italiana, autor de tantos livros fantásticos (nos dois sentidos) concretizou em SE UM VIAJANTE NUMA NOITE DE INVERNO uma das obras mais instigantes de toda a literatura universal, aliando-se àqueles, a exemplo de Cortázar, Kafka e Borges, que revolucionaram o conceito de romance.

Construído em torno de dez histórias incompletas, com um fio narrativo que lembra os contos das Mil e Uma Noites, alinhavadas com um narrador que se confunde com um personagem e com o próprio leitor, Calvino nos apresenta uma verdadeira aula de como (e porquê!) escrever um romance.

Não é um romance "fácil". Quem prefere leituras que mais parecem roteiros cinematográficos, desista. A ação, aventura, suspense, sexo e mistério estão apresentados nele, sim, mas de outra forma. Não pelo fato em si mesmo, mas pelo que ele representa de desafio criativo para quem elabora o texto. É um livro para quem tem em si - seja leitor ou escritor - o germe (ou a semente, ou a larva) da Literatura, para quem percebe o que é produzir Arte com palavras.

Faço um destaque especial para o capítulo NO TAPETE DE FOLHAS ILUMINADAS PELA LUA, o qual é iniciado com um dos mais agradáveis parágrafos da obra: "As folhas de nogueira-do-japão caíam dos galhos como uma chuva fina e pontilhavam de amarelo o prado. Passeávamos o senhor Okeda e eu pela alameda de pedras lisas. Eu lhe disse que gostaria de separar a sensação de cada folha singular de nogueira-do-japão da sensação de todas as outras, mas que perguntava a mim mesmo se isso seria possível. O senhor Okeda respondeu que era possível.... Ora, eu, sem nada perder dessas agradáveis sensações abrangentes, gostaria de manter distinta, sem confundi-la com as outras, a imagem individual de cada folha desde o momento em que adentra o campo visual e segui-la em sua dança aérea e em seu pouso nas lâminas da grama."

Nelson Rodrigues dizia que Guimarães Rosa não teria produzido a fantástica obra que o imortalizou se não tivesse se encastelado em uma torre de marfim. Acredito que Nelson, outro escritor esplêndido, mas apenas preocupado com a sua própria obra e sucesso, jamais se deu ao trabalho de conhecer a vida pessoal de Rosa, das suas andanças entre as gentes simples do sertão brasileiro. Talvez Rosa, assim como Drummond (outro autor que ele criticava frequentemente), quisesse apenas se manter distante de caras chatos como ele. Mas ainda que isso fosse verdade, Rosa abriu um caminho, legou um aprendizado seguido por centenas de novos autores.

Calvino, em SE UM VIAJANTE..., demonstra como um escritor que aprende a dominar o seu Ofício torna-se um Mestre que não apenas tem a capacidade e a técnica para escrever qualquer texto que desejar, mas também de transmitir aos seus "discípulos", ou seja, às gerações seguintes, muito da sua própria experiência, e que sempre existem escadas (ou elevadores) que levam às Torres de Marfim.