Sobre HANCOCK, o filme
Não são justas as críticas negativas ao filme HANCOCK. Saio em sua defesa, talvez porque eu queria ser John Hancock. Também, eu já escrevi que queria ser tanta gente! Eu já disse que queria ser o Raul Seixas, o Raduan Nassar, o Nelson Rodrigues, o Homem-Aranha ou o Batman. Eu queria ser John Constantine... mas não queria ser John Malkovich. “Mas justo a mim me coube ser eu mesmo”, como diz a personagem dos gibis, Mafalda.
Hancock (Will Smith) é o perfeito tipo de anti-herói: alcoólatra, bagunceiro, bem-intencionado, mas totalmente inconsequente. Ou seja, perfeito, para quem não gosta desse heróis “dandies”, tipo Shazam ou Superman (ou seria Superdrag?), com aquela ridícula sunga sobre a calça “leg”. Quando adolescente, eu me identificava com Peter Parker, nos quadrinhos da década de 70, sem dinheiro para pagar o aluguel nem para comprar os remédios para a Tia May, se submetendo à arrogância do sr. J. J. Jameson, fazendo fotografias free-lancer de si mesmo para sobreviver, apesar do seu dom. Depois veio o mutante Wolverine, com aquele cabelo punk e seus charutos cubanos, fatiando os inimigos com suas garras de adamantium.
Além do instigante perfil psicológico de Hancock, há ainda a correlação da história com o mito do andrógino. Diz a mitologia greco-romana que, no princípio, os seres criados pelos deuses traziam em si os dois sexos, masculino (andros) e feminino (gynos). Eram completos, abarcando as duas polaridades: positivo e negativo, yan e ying, passivo e ativo, macho e fêmea, luz e sombra. Esses seres consideravam-se tão poderosos em sua completude que acabaram por esquecer de reverenciar os deuses. E que seria dos deuses se ninguém os adorasse? Por isso, antes que caíssem em total ostracismo, Zeus, com seus raios tonitruantes, dividiu-os ao meio, fragilizou-os, humanizou-os, criando almas gêmeas sempre em busca da sua outra metade, implorando aos deuses que os ajudassem.
Com Hancock é mais ou menos assim. Como ocorre com Thomas Anderson, o Neo da Matrix, ele tem que fazer uma escolha: viver ao lado da sua amada e perder todos os seus poderes ou continuar sendo um super-herói, para salvar o mundo, sempre que necessário. Quando ele está próximo de Mary, sua “partner”, interpretada por Charlize Theron, os poderes de ambos desaparecem. Os seres que os criaram certamente pensaram o quanto seria perigoso viverem juntos. Então, apesar de se amarem intensamente, viverão eternamente separados, através dos séculos, como dois Orlandos, de Virginia Woolf.
No passado, criamos deuses – nossos protetores – que, por sua vez, nos criaram à sua imagem e perfeição, barganhando a sua proteção por amor e submissão. Hoje, independentes, criamos heróis à nossa imagem e imperfeição, ainda para que nos protejam. Mas tudo o que podemos oferecer é a primeira página da Newsweek, uma manchete no Le Monde, 30 segundos na CNN e, na melhor das hipóteses, transformá-lo em um blockbuster, um campeão de bilheteria. Amá-los? É quase pedir demais.
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