ARRUMANDO AS MALAS
ARRUMANDO AS MALAS
Ah! e se eu tivesse agora a chance de saber que chegou o momento de arrumar minhas malas para minha última viagem! Uma viagem ainda sem endereço certo, na qual, pela primeira vez na vida, estarei verdadeiramente diante do desconhecido, do inesperado. Eu até tenho a promessa de um roteiro e de um ponto de chegada concreto, mas, ainda, trata-se, apenas, e unicamente, de uma promessa. O desconhecido, de fato, e o inesperado me aguardam. Hoje é meu último dia nessas paragens. Vinte e quatro horas, nada mais que isso, é todo o tempo que tenho para arrumar minhas malas rumo ao desconhecido, rumo ao inesperado. Amanhã, nesse exato momento, estarei entrando noutra realidade, na verdade, noutra, digamos, dimensão; a dimensão do desconhecido, a dimensão do inesperado. Por isso, o meu futuro hoje é o agora, o meu tempo hoje é o já.
Olho ansiosamente o meu relógio e vejo que os ponteiros dançam de forma inquieta, sem qualquer pausa. Embora o antigo tique-taque do meu velho relógio de corda hoje não mais exista, entretanto, o meu relógio moderno, igualmente ao meu velho relógio de corda, continua a avançar e parece até que de forma mais acelerada.
Ah, meu antigo relógio de corda! Você me lembrava a cada momento, a cada segundo até, que a minha última viagem um dia poderia chegar. Mas você foi silenciado pela modernidade e, em muitos casos, seus ponteiros cederam lugar para os dígitos. 2:32:12, é assim que você silenciosamente me fala e, ao mesmo tempo, me engana. Eu corro. nesse traiçoeiro corre-corre do dia a dia, e não vejo o tempo passar e, quando lhe olho...ah, o tempo já passou. Você foi programado para isso mesmo, para silenciar, para esconder o tempo, para que eu não visse a vida passar por mim e eu não me preparasse para esse dia de hoje. Você, meu relógio moderno, sim, você não é como meu velho relógio de cordas que precisava que eu parasse alguns momentos do dia para dar cordas para que ele, assim, pudesse funcionar. Naquele tempo, ao dar cordas no meu velho relógio, eu tinha tempo de rodar pra traz e pra frente aquele pino de dar cordas, e aí eu podia, pelo menos naquele diminuto espaço de tempo, olhar a hora e me lembrar que um dia chegaria esse dia, o dia da minha última viagem para o desconhecido, o inesperado.
Agora eu tenho que correr, tenho que arrumar as malas. Nelas eu não colocarei as minhas adoradas camisas de grife, nem meus sapatos e tênis especiais. A minha roupa de ginástica não mais precisará ser cuidadosamente checada porque eu não necessitarei mais dela. Para onde estou indo, no desconhecido, no inesperado, possivelmente não tem academias. A camisa do meu time e o meu querido violão não mais serão necessários. Meus cartões de crédito, meus cheques, sim, minha poupança, meu dinheiro ganho com tanto suor, nada disso me fará falta. Meu chefe, sim, meu chefe, ele não irá comigo. Minha esposa, meus filhos, meus amigos, ninguém irá comigo nessa solitária viagem. Todos os meus adereços são completamente dispensados nessa hora.
Agora eu tenho que correr, tenho que arrumar as malas.
As minhas malas, pelo que percebi agora, são abstratas, subjetivas, informes. Eu não consigo pega-las com minhas mão físicas. Curioso é que nelas cabem muitas e muitas coisas. Seus espaços interiores são de volume imensurável. Coisas boas, coisas ruins, coisas doces da vida, coisas amargas, amizades, inimizades, fidelidade, traição, verdades, mentiras, amores, desamores, calma, desespero, alegrias, tristezas...oh, quantas coisas, quantos contrastes cabem nas minhas malas!
Não, eu não posso carregar todo esse peso. Não eu não posso carregar todos esses contrastes nas minhas malas. Embora caiba tudo nelas, o excesso de peso me fará pagar uma fortuna. Não, eu não posso carregar todo esse peso. Eu não tenho como pagar esse excesso de peso. Eu preciso me desfazer urgentemente de muitas coisas para que minhas malas não sejam um peso, mas me tragam prazer de carrega-las.
Agora vou selecionar - vou separar rapidamente, porque o relógio está avançando - as coisas pesadas, das leves, as prazerosas, das aborrecidas. Vou separar uma a uma e vou deixar aqui todo o peso, tudo que possa atrapalhar minha viagem e me fazer penar diante do desconhecido, do inesperado.
Se eu tivesse essa chance, assim o faria.
Agora tive uma ideia! Vou fazer melhor. Eu não vou esperar essa última chance, eu vou faze-la acontecer. Agora, nesse exato momento, eu vou olhar para o meu traiçoeiro relógio digital e vou dizer-lhe, fortemente, que não serei mais enganado pelo seu silêncio. Eu vou dizer a ele, seriamente, que ele não mais me fará passar pela vida ajuntando peso para minhas malas da última viagem. Que ele continue no seu morboso silêncio e, quanto a mim, eu vou fazer soar um tique-taque interior e vou contar, cada segundo que passar para que eu não seja mais enganado por esse modernismo que roubou o tique-taque do meu velho relógio de corda.
Sim, acabo de formatar a minha ideia: marcarei no meu relógio a hora e direi a mim mesmo que eu tenho, apenas, 24 horas para arrumar minhas malas. 24 horas para jogar fora tudo que pesa nas minhas malas. Quero viajar como uma pluma levada pelo vento. Quero a suavidade do voo de uma água. Quero viajar na calma e na paciência do bicho-preguiça que mora no meu quintal. Meu futuro será hoje, meu amanhã será o agora.
Puxa, o relógio está avançando. Enquanto eu escrevia esse pequeno texto, já se passaram minutos. Desculpem, vou cuidar das minhas malas, eu tenho apenas 24 horas!
Recife, 23.05.2015